Por Breno Kümmel (*)

Nota dos editores: Este texto é parte do especial em memória de Sérgio Sant’Anna. Ao longo da semana, publicaremos todos os dias homenagens ao autor carioca.

O escritor decidiu descansar do texto que teimava em não ficar à sua altura e foi sentar na sacada de seu apartamento em Laranjeiras para fumar um cigarro. A cadeira de plástico era baixa demais para a vista que almejava; sem pestanejar, ele pôs as pernas sobre a mureta, equilibrando-se com tranquilidade, para ficar só ele com seu cigarro e o ar da tarde.

Em pouco tempo não era mais só ele, não tinha como: as pessoas lá embaixo começaram a se aglomerar, pensando estarem prestes a presenciar uma tragédia, se é que hoje em dia neste país qualquer coisa ainda pode ser entendida como tragédia. O escritor, entretanto, não se preocupou. Ele era texto, e ali, pelo menos por um pouco, ele conseguia algum controle das coisas. Pouco, sim, pois existia por um tempo curto, e para pouquíssimas pessoas, mas ali era ele que decidia, tudo o que acontece, cada detalhe, a ordem, até. Ali, a própria força da gravidade lhe devia satisfação: ele poderia jogar seu corpo pra frente e só cairá se decidir que não é mais interessante voar.

Menos, talvez. A graça do controle para ele nunca esteve no exagero. Poderia, talvez, fazer as cinzas se manterem presas ao cigarro enquanto a brasa consumia o caminho inteiro até o filtro, por mero capricho, ou, mais simples ainda, decidir que ventaria pouco, para poder olhar melhor sua fumaça contra a tarde, as curvas cinzas subindo contra a paisagem um pouco menos poluída na pandemia.

Poderia, sem levantar desconfianças, fazer sair de seu apartamento algum bolero, da caixa de som de seu computador, seu texto incompleto brilhando inútil na tela, ou até de uma vitrola ali ao lado que ainda funcionasse, o vinil calmo sob a agulha, pois nos contos é sempre possível ter em vinil as músicas de que se gosta. Teria colocado antes de vir à sacada, mantendo a verossimilhança, na tentativa de se inspirar naquele pathos desavergonhado, a simplicidade furiosa talvez lhe ajudasse a encontrar um final satisfatório para o texto. Contudo, o desespero açucarado do cantor na verdade atrapalhou, e ele ali diante do texto incompleto ficou sem graça de interromper a música, tamanho sofrimento, preferindo a saída da sacada, do cigarro.

Em sua idade avançada até o pequeno prazer da nicotina lhe seria censurado, mesmo que mantivesse os dois pés firmes no chão. Riu daquele pensamento, e estendeu as duas pernas bem para frente, as solas descalças ficando paralelas com a fachada do prédio do outro lado da rua, figurando por uns segundos como um piso distante. Se algo tão simples lhe era proibido, por que não transformar logo o que fumava em cannabis e aumentar a brisa da tarde, ou pior, ópio, trocando a bela vista por uma cama imensa num quarto muito escuro? Como não aproveitar aquele poder ao mesmo tempo tão vasto e pequeno para tentar transgredir o máximo que podia?

Foi o que tentou fazer em sua obra, que lhe dava algum orgulho, de tudo, mais de cinquenta anos de tentativas de captura do real, sua complexa variabilidade, seus encantos e enganos (aqui vinha um pouco do bolero), sua… inescapabilidade. Inescapável era um termo que parecia adequado para o momento, mesmo com todo o controle que exerceu por tantas páginas, parágrafos, palavras. Mesmo com apenas os cinco andares de altura diante de si, e sua sala por trás, sabia que estava encurralado. Escolhera todos os nomes, os tamanhos de pessoas e parágrafos, as falas e as roupas, os lugares, mesmo escrevendo tanto, por tanto tempo, sabia que seu poder mesmo assim era pouco; nada, quase. Poderia fazer a multidão lá embaixo desaparecer, ou numa distração dobrar de tamanho. Poderia fazer o que quiser, sim, mas em parte porque não fazia tanta diferença.

Para ele, entretanto, fizera, sim, e muita, do tanto que (metaforicamente) batera a cabeça contra a parede esses anos todos em busca da expressão perfeita, do equilíbrio da leveza com o peso, bem mais difícil do que o de seu corpo de setenta e tanto anos sobre aquela sacada, ou das cinzas de seu cigarro que finalmente caíam rodopiando lá embaixo.

Em pouco tempo, para manter a verossimilhança, as autoridades viriam salvá-lo, ou, quem sabe, considerando a nova normalidade nacional, empurrá-lo de vez, para que não atrapalhasse mais a tarde e o tráfego. Precisaria decidir logo se voltaria ou não ao texto, se deixaria para amanhã, já tendo engasgado o bastante em avanços falsos que fazia desaparecer da tela mal colocava o enganoso ponto final. A música ali de dentro já tinha cessado, o vinil girando em falso com um discreto chiado, ou o computador zunindo desacompanhado de qualquer cantoria portenha.

Desassistido daquela justificativa para sua paralisia, pensou, então, em suas referências principais, até chegar ao seu herói maior, Duchamp, o tamanho de sua ousadia de colocar o conceito de arte em si entre as molduras do que apresentava para contemplação. O urinol, assinado. Gênio. Certamente não era mais possível fazer como ele; mesmo os que o seguissem fielmente fariam tudo seguindo um líder. Tudo nascia de tudo, sempre, ou nem isso, sequer nascia, continuava. A dificuldade era saber como continuar, mesmo nos começos.

Olhou para as pessoas lá embaixo, que estavam em maior número, sim, naturalmente, e então se deu conta de que na pandemia aquele tipo de aglomeração era proibido, ou deveria ser. Poderia, talvez, fazer com que aquela sua pausa estivesse acontecendo noutro período histórico, mas já tinha mencionado a poluição diminuída, e mesmo não tendo colocado nada da cidade menos movimentada, nem descrito qualquer outra preocupação com aquele fim de mundo, sentia que mudando aquilo atravessaria a fronteira da ficção para a mentira. Como na vida real, seja lá o que isso quisesse dizer, era uma fronteira difícil de cruzar de volta.

Um moço no amontoado lá embaixo vestia uniforme, não de seu emprego, e sim o da seleção. Pensou em como até pouco tempo a associação da camiseta amarela era apenas com o esporte que amava e não com o apoio à horda de deformados morais que tomara o poder no país. Cogitou fazê-lo desaparecer, não da forma em como eles acham bonito fazer desaparecer, e sim apenas diminuir seu interesse com a cena, ele seguindo seu caminho; talvez então conseguisse retomar o que tinha de tranquilidade com o que lhe restava de maconha. Mas não tinha como escondê-lo, nem ele, nem o policial militar que, em vez de dispersar as pessoas ali embaixo, se ajuntava na curiosidade mórbida coletiva, o rosto virado pra cima. Lembrou da foto famosa do policial apontando a arma para as pessoas que (de suas janelas) xingavam a carreata governista pelo fim da quarentena, e pensou, triste, que a ousadia genial de Duchamp em chamar um urinol de obra de arte era pequena perto da ousadia cotidiana dos que insistem em chamar este lugar de país.

Era quase o bastante para querer dar aquele pulo, ou talvez fosse mesmo o bastante, e ele apenas tivesse optado por ignorar. Poderia muito bem mudar de ideia, fora dos seus textos era senhor de pelo menos isso. Já estava cansado, um pouco. O texto lá dentro ainda esperava por ele, e esperaria o tanto que fosse necessário. Ficaria dependurado ali mais um pouco, teria mais alguns minutos até irromperem por sua porta para “salvá-lo”; não queria abusar tanto daquela realidade, por mais que ela não hesitasse em abusar dele e de tantos outros. Enquanto isso, poderia deixar seus pensamentos passeando mais um pouco, eles talvez fariam surgir ainda a possibilidade de mais um parágrafo. Talvez fosse esperança demais; que fosse então só pelo prazer daquela pequena liberdade.


(*) Breno Kümmel é escritor e lamentavelmente mora em Brasília. Lê Sérgio Sant’Anna desde a adolescência.