Thomas Vinterberg ganhou a atenção da crítica de cinema mundial quando, em conjunto com Lars Von Trier, assinou o manifesto do movimento Dogma 95.  Os dois cineastas dinamarqueses exigiam um cinema que voltasse ao mínimo: história, planos, atuações, e se despisse de recursos técnicos supérfluos.

Seu filme de estreia, Festa de Família, ganhou o prêmio do júri em Cannes e foi celebrado como um marco do cinema contemporâneo. Porém, sem a personalidade “excêntrica” de Von Trier ou seu talento para experimentações, Vinterberg acabou construindo uma carreira de filmes bons, mas menos relevantes, espécies de versões pálidas dos radicalismos de seu amigo mais famoso.  Seu Querida Wendy, de 2004, por exemplo, recebeu excelentes críticas, mas é inevitável ver ali uma tentativa tímida de Dogville.

Em A Caça, seu filme mais recente, Vinterberg abandona qualquer experimentação ou radicalismo e constrói um filme quase clássico, emocional e que, embora longe de ser incendiário como Festa de Família, finalmente o revela como cineasta maduro e excepcional.

Acompanhamos Lucas, um homem de 42 anos, querido e respeitado, tem sua vida destruída por uma acusação de pedofilia. Lucas trabalha em um jardim de infância após a escola em que dava aula ter fechado, ele acabou de se divorciar da mulher e luta pela guarda do filho adolescente.

A primeira parte do longa constrói a personalidade de Lucas e aproxima o espectador dele: um homem que gosta de cachorros, de crianças (e que é amado por elas), cujo filho quer morar com ele.  Esse retrato pode parecer artificial e clichê,  mas a atuação de Madds Mikkelsen (007 Casino Royale), pela qual ele levou a Palma de Ouro em Cannes ano passado, que dá substância ao personagem. Mikkelsen é contido e, sobretudo, terrivelmente honesto nesse filme, construindo um Lucas demasiado humano.

Além do personagem extremamente simpático, Vinterberg constrói uma espécie de idílio: é temporada de caça, os homens da cidade caçam cervos, bebem e demonstram um amor fraternal que chega a fazer inveja, Lucas tem uma nova namorada e em algumas semanas seu filho voltará a morar com ele. O diretor coloca o espectador em uma posição confortável e quando o retira dela a angústia é redobrada.

O melhor amigo de Lucas tem uma filha, Klara. Abandonada entre pais que brigam e pouco reparam se ela sai de casa sozinha ou que a menina tem uma obsessão com linhas na calçada, ela encontra em Lucas a sensibilidade de que precisa. Mas Klara desenvolve uma paixão infantil e assim que Lucas a “rejeita” ela reage acusando-o de assédio para a diretora da escola.

Hitchcock dizia que tensão é a bomba relógio embaixo da mesa, o espectador sabe que ela está lá, mas não os personagens jantando. A Caça é todo construído assim. O espectador sabe o que motivou Klara, sabe de onde ela tirou as palavras que disse e percebe a cegueira dos adultos em volta, mas nenhum deles vê nada disso.

A fotografia luminosa e dourada do início é substituída por uma meia-escuridão cinzenta e os planos abertos dão lugares a closes, o filme se torna angustiante, claustrofóbico. Os enquadramentos comparam constantemente Lucas aos troféus de caça: assim como os cervos, Lucas é um animal belo e inofensivo, mas que será sacrificado pelo funcionamento daquela sociedade. E não há possibilidade de escape.

Em Festa de Família, Vinterberg já havia se mostrado interessado em explorar a escuridão por baixo da organização e do controle da sociedade dinamarquesa. A Caça parece ter esse mesmo objetivo. Ele examina o puritanismo da origem luterana, possível responsável por uma mentalidade que não admite que crianças mentem, mas nega o benefício da dúvida a um dos membros mais queridos da comunidade. O que acontece com Lucas é uma caça às bruxas com ecos de A letra escarlate. É notável especialmente o ar de superioridade moral com que as funcionárias da escola tratam a namorada de Lucas em determinada cena.  De forma sutil, mas cruel, Vinterberg também escancara  a brutalidade presente naquela sociedade e assim se aproxima de Michael Haneke em seu excelente A Fita Branca, ao mostrar como a pureza pune aqueles que se desviam.

A Caça é um filme angustiante mas emocional, íntimo em sua crítica da sociedade dinamarquesa. Um drama tenso construído dentro das regras do gênero, mas por mais convencional que seja é um filme de uma força extraordinária. Vinterberg comove e ao fazer isso trabalha sua crítica em um nível menos intelectual, mas mais pungente. O filme confirma ambos: Vinterberg e Mikkelsen como mestres de suas artes.