Há exatamente um ano eclodiram no país manifestações populares como não se viam pelo menos desde as grandes passeatas pelas Diretas Já, nos anos 80. As pautas eram diversas e talvez tenham começado sob a liderança do Movimento Passe Livre, contra o aumento de R$0,20 sobre as tarifas de ônibus imposto pelos governos estaduais. Mas “não eram só pelos 20 centavos”, lema imortalizado pelas passeatas, e assim surgiram um turbilhão de outras reivindicações, como contra os gastos com a Copa do Mundo, a corrupção e a má qualidade dos serviços públicos. A pauta de insatisfações era tão diversa que foi possível ver cartazes de “Fora Dilma” ao lado de outros pedindo “10% do PIB para a Educação”, “Fim da Polícia repressora” e até “Fora Roberto Dinamite” (presidente do Vasco da Gama).

Agora estamos em Junho de 2014, mês em que a bola rola na Copa do Mundo do Brasil, e as manifestações não pararam, mas esvaziaram consideravelmente. Uns dizem que por culpa da “performance” agressiva e quase autossabotadora dos black blocs, esses novos personagens da vida brasileira; outros veem que depois da hecatombe do ano passado, em que uma só noite reuniu mais de dois milhões de pessoas na Presidente Vargas, avenida mais importante do Rio de Janeiro, os grupos agora são menores, mas mais coesos e lutam por pautas mais bem definidas (aumento salarial, plano de carreira, moradia, direito ao aborto, etc).

Cientistas sociais, políticos, jornalistas e até psicólogos tentaram interpretar o fenômeno, geralmente com resultados superficiais ou tendenciosos. Uns dizem que tudo se perdeu nas mãos de “reacionários e fascistas” que cooptaram a classe média despolitizada com um discurso antipartidário; outros acreditam que tudo, mais uma vez, acabou em pizza; mas alguns veem que esses movimentos são bem mais dinâmicos e se apresentam de formas múltiplas, e episódios como o sumiço do pedreiro Amarildo, a greve dos professores estaduais do Rio, e depois dos rodoviários, dos policiais de São Luiz (MA) e agora a dos metroviários de São Paulo e a morte do dançarino DG estão inter-relacionados à onda e “revolta popular” e insatisfação coletiva.

Livros sobre o tema começam a aparecer nas prateleiras das livrarias, como Vinte Centavos, a luta contra o aumento (Editora Veneta), Protesta Brasil – das redes sociais às manifestações de rua (Prata Editora) e Cidades Rebeldes (Boitempo Editorial) e até o Cinema sentiu as marolas desse mar revolto que é o Brasil de hoje. Filmes, na maioria das vezes coletivos, quase de guerrilha, fizeram compilações das imagens registradas por profissionais ou amadores nas diversas manifestações: Com Vandalismo (2013) destaca as manifestações em Fortaleza (CE); Junho – o mês que abalou o Brasil (2014), do jornalista João Wainer, da Folha de São Paulo, resume as manifestações na maior cidade do país. Já Rio em Chamas se classifica como um filme-manifestação e é composto por diversos seguimentos em curta-metragem de vários autores, abordando de forma múltipla (tal qual os grandes protestos) os momentos centrais de junho e julho do ano passado na cidade do Rio de Janeiro.

Rio em Chamas tem como qualidade não tentar ser didático, nem tampouco um manifesto. O filme não tenta responder perguntas, mas mantê-las vivas no debate social. As principais exigências sociais dos manifestantes não foram cumpridas e os projetos políticos revelaram-se meras tentativas de “tampar com panos quentes” o turbilhão social. Os pactos propostos pela presidenta Dilma não foram efetivados e, em pleno ano eleitoral, vemos as velhas figuras fazendo a velha política e contando as mesmas mentiras. Assim, o lançamento desse documentário exatamente um ano após a eclosão das manifestações é o bom exemplo da memória resistente e de uma luta que não acabou.

Os curtas-metragens são variados, têm propostas diferentes e vão desde animações até encenações fictícias, passando, é claro, por registros reais dos momentos mais tensos nas ruas. Por mais que haja um pendor ideológico (e parece-me impossível que não houvesse), é notável a maturidade na abordagem que retrata, inclusive, as incongruências dos próprios manifestantes, como quando grupos que carregavam bandeiras de partidos de esquerda foram repelidos por outros grupos, nacionalistas, que só defendiam o uso exclusivamente da bandeira nacional – pessoas que curiosamente se diziam defensoras da Democracia. Retratos de um país sem desenvolvimento político, onde pouco se estuda sobre o tema e quase nada se sabe o que fazer com ele.

A linha mestra que perpassa toda a obra é da agressividade no confronto entre a polícia e a população. Recheado de cenas esfumaçadas pelo gás de pimenta jogados pela PM, os flagrantes revelam prisões arbitrárias, agressões desnecessárias (como aos professores municipais que ocupavam a Câmara Municipal) e despreparo policial.

Esses curtas múltiplos ora apresentam figuras conhecidas, como o ator Paulo Tiefenthaler, do programa Larica Total (Canal Brasil), e Sininho, militante do PSOL presa num dos mais violentos protestos da Cinelândia, ora revela histórias valiosas de completos desconhecidos, como no segmento performático Independência para quê?, apresentado de trás para frente; em outro momento, a morte do artista anão Fernandão, vítima de intoxicação por gás de pimenta, em Fernandão Vive; e no curta encenado Entre os Black Blocks e os Block Busters, amigos tentam relembrar os principais eventos daquele período, deixando-se confundir pela memória, enquanto comem uma pizza.

Esse filme tem certo senso de urgência, como bem lembrou a crítica de Fernando Oriente no site Tudo Vai Bem. Estamos a poucos dias da Copa do Mundo, os olhos do mundo se voltam ao Brasil e parece não ser honesto falsificar uma imagem de “país feliz, futebol e samba” só para inglês ver. Em análises mais amplas, as revoltas brasileiras se associam a um conjunto de manifestações mundiais, as chamadas Primaveras, que, com maior ou menor sucesso, parecem refletir, em última instância, uma crise no Capitalismo atual. Seja no Egito, Líbano, França, Venezuela ou nas cidades do Brasil, a despeito de razões muito particulares e construções sócio-históricas específicas, existe uma estafa que une todos nós.

Assim, Rio em Chamas fica como indicação de tempos muitos atuais e de lutas que não se encerraram, pelo contrário, tendem só a aumentar durante o mundial de futebol e depois, no período eleitoral. É o povo tomando agência, e com mais agência, vem maiores responsabilidades. O filme está em cartaz em pouco cinemas do Brasil, por isso, diante de uma distribuição nacional deficiente, os realizadores autorizaram a divulgação online e no link abaixo vocês poderão vê-lo na íntegra. Bom filme, e nos vemos nas ruas (eu sou o cara de máscara preta).