No inverno de 1965, Ionatan Lifschitz resolveu abandonar sua mulher e o kibutz onde nascera e crescera. Decidiu sair e começar a viver. Não sabe o caminho que quer seguir e seu principal objetivo é ensaiar para avisar sua mulher, Rimona, sua mãe Chava e seu pai Iulek, líder da comunidade onde vive, sem alarmá-los e para que notem que aquele é um processo no qual ele deve passar. Perto da partida de Ionatan o estranho e misterioso Azaria chega ao kibutz ((comunidade agrícola existente em Israel)) Granot. Mesmo com as diferenças ideológicas e “espirituais” (tirando o lado religioso da questão espírito), os dois criam um laço de amizade muito forte – e estranho – resultando na mudança do novo membro da comunidade para a casa de Ionatan e pela paixão que desperta pela esposa do novo amigo.

Publicado originalmente em 1982, e relançado ano passado pela Companhia das Letras com tradução de Paul Geiser, Uma certa paz é uma obra essencial da bibliografia extensa de Amós Oz, não apenas por trazer diversos aspectos sobre a cultura judaica, mas por levantar uma questão universal: o que é paz e como fazemos para alcançá-la?

Paz recebe diversas definições e, na grande maioria, está a famosa tranqulidade, entretanto não especifica se apenas da alma ou com outras pessoas. É nessa busca pela paz que os caminhos de Ionatan e Azaria se cruzam e seguem direções opostas, o primeiro foge de uma calmaria bucólica, de uma família que o ama e de um futuro promissor como líder da comunidade, o segundo quer fugir do mundo exterior – onde uma Guerra eminente (a famigerada Guerra dos Seis Dias) está prestes a explodir e mesmo sendo um fugitivo, Azaria tem um lado político forte e exerce discursos dialéticos intensos, enquanto Ionatan não consegue expressar a dolorosa falta que lhe faz algo além daquele ambiente terrivelmente conhecido que o torna indeciso e de sentimentos conflituosos – aos quais passado amoroso de sua mãe tem papel intrínsico.

É interessante notar que Oz não joga as tradições judaicas de forma didática e solta, todas soam naturais como se o leitor já conhecesse grande parte da cultura a começar pela mãe judia típica, seguindo pelos diálogos de sabedoria até o humor peculiar. A vida camponesa é bem explorada, mostrando como as colheitas, as chuvas, a falta de luz, o trabalho comunitário e cooperativo e como todos esse itens influenciam nas decisões de cada membro do kibutz e seu papel dentro desse organismo. O lado político não é deixado de lado, estamos em Israel e estamos perto de um conflito e os filhos dos kibutzim estão no exército. Relacionamentos amorosos, passado, política e decepcões se misturam durante toda a narrativa criando laços inquebráveis com o leitor que muitas vezes não percebe o quão chocante é um personagem não saber que dia é ou o que é a traição. Aliás essa é uma constante nos arcos narrativos e que gera as mudanças mais significativas na história da comunidade de Granot.

Outro ponto relevante a ser levantado – dado a sua importância – é a participação de Srulik (músico e contador do kibutz que em breve se tornará secretário) e suas divagações sobre sentimentos e atitudes, sobre o corpo e a alma e sobre a juventude e os costumes, tudo isso culminando na sua formação de líder suplente e imparcial. Graças narrativa-diário de Srulik, é possível conhecer outros costumes dos kibbutzim, outros personagens secundários e, também, reconhecer uma figura marcante dos anos 60 em Israel: o primeiro-ministro Levi Eshkol, conhecido por ter estreitado laços entre o estado de Israel e a cultura da União Soviética, permitindo que diversos judeus soviéticos emigrassem para o estado judeu.

A jornada de Ionatan segue diversos rumos, em alguns momentos ele é descrito quase como um mendigo, ou filósofo, que se perde na vida e está sem destino. Todavia, essa falta de rumo e destino é o que engrandece a viagem do filho mais velho de Iulek. A sua paz só poderá ser alcançada após uma incansável busca pelo nada, ou melhor, pelo algo que palpita em sua consciência, em sua culpa, em sua alma inquieta e, agora, não tão jovem.

Há uma verdadeira paz em comum que todos os seres humanos – os eternos insatisfeitos – procuram? A paz ou o destino, o sossego e as emoções, todos os sentimentos e medos de um homem podem entrar num turbilhão e resultar em paz e nem tudo precisa soar em harmonia. Ao final da narrativa o autor deixa uma nota curiosa, junto a dica de outro livro que narra a vida num kibutz, dizendo: “com certeza essas coisas aconteceram”, será que ele quis dizer que acontecem todo o dia (com tanta coincidências e ligações) ou que aquele fato é verídico dentro da sua vivência?

Amós Oz com sua narrativa consegue construir vários ângulos para a tranquilidade de cada homem, seja aquele busca uma verdade exterior ou aquele que precisa se fechar sem se importar se será supérfulo ou chocante, o importante é que todos tenham sua própria voz e consigam conviver uns com os outros e consigo mesmos.