Os deuses do Cinema têm me levado por caminhos violentos, por culpa deles mergulhei enlouquecidamente na filmografia de Michael Haneke (A Professora de Piano, 2001), apreciando a tensão constante, a dor que se aproxima e o medo sem susto de seus filmes mais do que incríveis; também apreciei criticamente Tarantino, não gostando de Django Livre com suas chibatadas e ‘niggers’ desnecessários; além de ter sido apresentado a Todd Solondz (Felicidade, 1998), com sua filmografia ousada e que pode facilmente ser mal interpretada.

Agora, pensando bem, percebo que de um modo geral os deuses da arte têm me levado a violência e dor, basta notar meu fascínio pelas tripas de Adriana Varejão. É claro que isso significa alguma coisa. Como Tom Cruise diz na narração inicial de Magnólia (1999): “Isso não pode ser só mais ‘uma daquelas coisas’… Não, por favor, não é só isso”. Talvez mais do que ter sido levado à violência, eu tenha na verdade apurado meu faro para notar o som e a fúria ao nosso redor; a violência ficou mais tangível, tornou-se assunto pessoal. Agora, esses mesmos deuses me levam à Pietá, de Kim Ki-duk, que é algo próximo do ápice da vilania humana.

Apreciar a violência não é necessariamente ser violento. Muitas vezes a violência impele muito mais à reflexão do que, de fato, a mais violência. Hitchcock era um obcecado pelo lado sombrio do homem – ele mesmo tinha uma sombra duas vezes o tamanho de seu corpo –, Haneke inegavelmente tem isso como um de seus principais assuntos, mas é Kim Kim-duk com seu Pietá que flerta com os limites do concebível, quase escorregando no excessivo, mas se mantendo suspenso sobre o fosso que pode ser a alma humana.

Superficialmente Pietá parece apelativo e não me surpreenderia em ver os mais sensíveis deixando a sessão em sua metade. O Cinema oriental é, sem dúvida, difícil, especialmente para o público do pipocão explosivo. Às vezes até para cinéfilos mais calejados um Hahaha (de Sang-soo Hong, 2010) no dia errado pode deixar a impressão de que o Cinema é a coisa mais chata do mundo. Contudo, Pietá tem uma linguagem moderna e um ritmo interessante, fazendo com que nós, incautos ocidentais, consigamos acompanhar suas intenções sem maiores problemas.

Ainda assim, o filme não deixa de ter surpresas, e as reviravoltas da trama são o que ela tem de melhor, além das impecáveis atuações de seus protagonistas: Lee Jung-Jin como Gang-Do, inicialmente anestesiado pela dor e maldade e no fim mostrando todo seu desespero, e Jo Min-Su, como sua mãe.

Gang-Do é um cobrador de dívidas sul coreano, impiedoso, não vê nenhum dilema moral em aleijar seus clientes para que o seguro seja liberado e ele receba o dinheiro que lhe é devido. Sua vida muda quando sua mãe que o abandonara logo após o nascimento aparece, oferecendo-lhe um carinho que nunca antes havia conhecido – e sendo retribuída com todos os tipos de agressões, da escatológica à sexual.

Pietá é, sobretudo, um filme que nos guia constantemente a difíceis perguntas. O que é a dor? Como se curam as feridas da alma? – mas acima de todas: quanta dor alguém é capaz de causar e de suportar?

Mas a pergunta que me restou foi: por que tanta violência? Por que o diretor optou por essa ferramenta dramática de forma tão indiscriminada? Não me parece questão de fetiche. Há quem diga que Pietá é uma grande crítica ao capitalismo e talvez a vitória do Leão de Ouro no último Festival de Veneza tenha sido por essa possível genialidade. De fato, em alguns momentos surge entre os personagens a indagação: “o que é o dinheiro?” – e o protagonista é visto como “um demônio que tenta as pessoas como dinheiro”. Além disso, seus devedores estão longe de serem vítimas, alguns deles são tão desprezíveis quanto Gang-Do.

Porém, aqui me parece haver sobretudo o desejo estético da dor. A violência desse filme paradoxalmente o preenche com bons momentos e o esvazia pela falta de medida. O filme começa com morte, termina com morte e em todo o seu percurso é recheado por gemidos e choros e penosas cenas de tortura, criando quase um Jogos Mortais cult.

Resta a inegável qualidade do diretor/roteirista, que ao longo da narrativa dá a seus protagonistas valores inversos dos apresentados inicialmente: enquanto Gang-Do é preenchido por uma felicidade pueril, desconhecida, e deleita-se como uma criança diante da mãe reaparecida, ela aos poucos desconstrói a imagem da Pietá de Michelangelo que inspirou o título e o pôster (lindo, por sinal). Assim Pietá se estabelece como de fato um bom filme, embora prejudicado pelos excessos de seu excessivamente autoconfiante diretor.

http://www.youtube.com/watch?v=_-eAqO_t-Rs