Em outras ocasiões tive oportunidade de dizer os porquês de eu não ser um leitor costumeiro de romances históricos. Para não ficar me repetindo com relação as minhas ressalvas sobre o gênero, recomendo-lhes que leiam a resenha do livro História do cerco de Lisboa, de José Saramago, que publiquei no Posfácio há algum tempo.

De qualquer forma, a referência ao romance histórico não é gratuita, pois o livro ao qual essa resenha se volta, o primeiro volume sobre a Revolução Francesa escrito por Max Gallo, possui alguns pontos em comum com os romances históricos, embora sob um ponto de vista e abordagem um tanto distintas.

Adentrar num tema tão longamente trilhado como a Revolução Francesa é um exercício de ousadia. E que requer, na minha opinião, uma porção bastante precisa de humildade. No caso do primeiro volume da série sobre a Revolução Francesa, O povo e o rei (1774-1793), a humildade é requerida no sentido de que se trata não só de um conjunto de eventos intensamente estudado e interpretado pela historiografia e por outras fontes, mas também porque se trata de um conjunto de eventos de importância cabal para a formação do mundo contemporâneo e da realidade como a conhecemos. Georges Lefebvre, um dos historiadores de maior peso desse tema, sublinhou que a história universal propriamente dita começou a partir da Revolução Francesa.

Escrever um livro sobre a Revolução Francesa, portanto, exige uma grande preparação, tanto com relação ao conhecimento factual dos eventos e do processo histórico em si, quanto também acerca da vasta bibliografia já produzida sobre ela. Além disso, exige também que se proponha algo novo, novo não no sentido sensacionalístico, apoteótico ou revisionístico, mas novo no sentido de incidir luz sobre pontos obscuros ou rearranjar os fatos para dar-lhes uma interpretação mais apurada, ou, como reza o dito popular, “que não chova no molhado”.

O livro de Gallo, embora não seja uma síntese dos eventos da Revolução Francesa nem apresente uma tese avassaladoramente distinta das demais apresentadas, se vale de um recurso narrativo ousado para contar a história, fazendo com que o historiador, jornalista e político francês não seja mais um a dizer o mesmo: com um misto de romance e historiografia, Max Gallo conseguiu compilar uma quantidade impressionante de documentos, pô-los diante das interpretações historiográficas e, a partir disso, escrever uma história muito interessante sobre a Revolução Francesa.

Uma das razões que faz do livro de Gallo uma obra interessante é o fato de ele se valer de fontes históricas para costurar as inserções romanescas. Desde as cartas de Luís XVI até os discursos dos clubes jacobinos, dos cartazes afixados pelas ruas até os relatos de pessoas que viveram o turbilhão de Paris, Gallo amarrou-os todos e apresentou-os em forma de narrativa como se construísse um romance.

Digo que ele se vale de recursos narrativos de romance porque ele usa certas “liberdades” com relação aos sentimentos, impressões e pequenos eventos para “preencher as lacunas” cotidianas que nem a vasta quantidade de documentos e fontes foi capaz de cobrir. Por mais herético que isso possa soar aos ouvidos de alguns historiadores, Max Gallo é extremamente cauteloso ao fazer essas pequenas inserções: ele as cerca de todas as possíveis fontes e a própria factualidade que o tempo nos outorga para torná-las coerentes e não meras suposições subjetivas.

Ou seja, aliando de forma cuidadosa as fontes históricas e a narrativa literária, o autor consegue encadear os eventos seminais da Revolução Francesa com a leveza de um romance e com a solidez factual de um texto historiográfico.

Isso lhe possibilita constituir-se numa leitura interessante tanto para leitores “comuns” quanto para historiadores e interessados pela Revolução Francesa. Para os leitores “comuns”, o desenrolar dos eventos tem o ritmo de uma narrativa ficcional com as peculiaridades que a própria história da Revolução Francesa possui. Para os historiadores e interessados pela Revolução Francesa, o livro se constitui uma oportunidade deliciosa de ter acesso a documentos tratados acessoriamente em outras bibliografias, as quais possuam, porventura, leituras mais estruturais, panorâmicas ou pontuais.

A experiência de ler o livro é a de acompanhar em tempo real o desenrolar dos fatos já tornados clássicos sem que, com isso, o conjunto da narrativa se torne por demais maçante ou preso aos detalhes. Em um momento estamos acompanhando Luís XVI em suas caçadas, em outro seguimos Maria Antonieta pelos suntuosos salões do Palácio de Versalhes, e mais à frente marchamos pelas ruas de Paris às vésperas do 14 de julho em direção à Bastilha, juntamente com uma multidão de populares. Através da bibliografia historiográfica, dos documentos e das fontes da época, Max Gallo consegue recriar a atmosfera explosiva e singular da época.

Apesar de minhas reservas com relação aos romances históricos, o livro de Gallo me surpreendeu no sentido de que os personagens cujas histórias ele conta não existem à sombra da história: eles existiram de fato. Isso coloca um peso distinto sobre os ombros do autor, já que o uso dos artifícios da narrativa são constantemente balizados pela própria realidade irredutível e incontornável dos fatos. Não há muito espaço para criações ou fantasias, há as possibilidades de costura dos fatos, seu encadeamento e sua subjacente interpretação, algo que Gallo consegue fazer com talento.

Palmilhar um caminho trilhado por tantas grandes figuras, tais como Tocqueville, Lefebvre, Mathiez, Soboul, Vovelle e o recentemente falecido Hobsbawm, não é uma tarefa fácil. Em minha opinião ela é potencialmente inglória pelo peso da tradição a pesar sobre os ombros daquele que ousa trilhá-lo. Mas Gallo conseguiu manter-se original diante das interpretações que o precederam sem, por conta disso, eximir-se do peso dessa mesma tradição.

A forma como Gallo conduz sua narrativa pode fazer pensar se sua inspiração é o chamado das musas, que fará transbordar de expressividade a obra, ou a canção das sereias, que irá conduzi-la ao naufrágio fatal. A julgar pela execução do primeiro volume da série sobre a Revolução Francesa, o canto das musas parece ter sido mais alto, e o autor parece ter conseguido harmonizar as “liberdades” narrativas com os compromissos da historiografia sem truncar o livro nem tirar-lhe a solidez.

Ainda que eu me sinta compelido a manter o ceticismo, seja enquanto leitor, seja enquanto historiador, a impressão sobre a escrita de Gallo foi muito boa.