Não que as favelas tenham deixado alguma vez de serem um problema nacional, fosse de forma velada ou de forma mais explícita, mas ultimamente, devido às investidas militares morro acima, elas têm se tornado cada vez mais um assunto em debate. Em parte por conta disso creio ser um bom motivo escrever sobre o romance Cidade de Deus, do escritor brasileiro Paulo Lins.
O livro em questão trata desse espinhoso problema, e procura retratar e analisar através da ficção determinadas mudanças ocorridas no cotidiano e na vida das favelas da década de 60 para cá. As histórias contadas são centradas em três personagens, Inferninho, Pardalzinho e Zé Miúdo, mas se estendem para além deles, englobando diversos outros personagens e histórias, que vão sendo formadas nas sombras da história dos protagonistas. A riqueza da apreensão de Paulo Lins e a vastidão do universo e dos personagens que ele “criou” acabou por gerar um conjunto de adaptações para a televisão e para o cinema, algumas delas, inclusive, procurando focar em personagens que foram tratados de forma secundária no romance Cidade de Deus.
As três histórias estão intimamente ligadas por se passarem num mesmo mundo. Digo mundo porque a escritura de Lins de fato “cria” um mundo, pois consegue apreender e traduzir em ficção uma gama tão grande de detalhes, com uma interpretação e sensibilidade tão habilmente incrustadas na prosa, que sabemos estar diante de um universo ficcional que o escritor escarafunchou em seus mais diversos e abjetos rincões.
A favela Cidade de Deus tem sua história contada no romance. Aliás, os moradores de Cidade de Deus têm sua história e a história do lugar onde vivem contadas. O recorte de tempo abarcado pelo romance de Paulo Lins cobre um período marcado por grandes transformações na favela, isto é, nas dinâmicas que nela se dão, no estatuto dela perante o território além-favela, no comportamento dos moradores, no cotidiano, na organização do crime, no estatuto moral que rege as relações sociais e assim por diante. Paulo Lins de fato mergulhou nas tramas da realidade para construir sua literatura.
As histórias de Inferninho, Pardalzinho e Zé Miúdo são todas marcadas pela dura realidade da favela. As condições precárias de moradia, trabalho, alimentação e existência em espectro geral exerceram pressões determinantes sobre o espírito e o caráter dos três, de modo que a criminalidade fora uma resposta extrema a uma situação extrema. Paulo Lins, no entanto, não se deixa ludibriar por maniqueísmos de nenhuma das partes: não quer justificar a ação dos criminosos nem quer deixar de lado a interpretação de suas atitudes como ações humanas em circunstâncias dadas.
O que acontece, porém, é que de Inferninho a Zé Miúdo, a realidade da favela se transformou drasticamente. Essas transformações não emanam dos três sujeitos, mas estão incrustadas potencialmente na forma como o lugar das favelas foi sendo definido, e também na maneira como determinados grupos de criminosos foram tomando conta do cotidiano se articulando com o tráfico, em âmbitos, aliás, cada vez maiores. O malandro da década de 60, o bicheiro que possuía uma autoridade perante os moradores da favela, se tornou o traficante, dono de boca de fumo e chefe do crime organizado conforme o tempo passou.
Paulo Lins não busca romantizar aquele passado – embora essa possibilidade esteja insinuada nas falas dos personagens e em suas rememorações –, o que ele quer perceber é como a violência e uma verdadeira guerra se consolidaram ao longo dessa passagem do tempo. A complexidade da situação não se esgota na prosa de Lins, mas é, em boa parte, interpretada através dela.
Os três protagonistas das histórias se veem às voltas com as pressões que podem empurrá-los em direção à criminalidade, mas suas vidas, apesar das semelhanças, são diferentes, porque a criminalidade que as moldou também não foi sempre a mesma. A violência e a brutalidade parecem ser mais intensas e generalizadas conforme o tempo avança. Zé Miúdo vive em uma realidade que difere sensivelmente daquela de Pardalzinho e Inferninho, embora todos eles estejam envolvidos no crime. Inferninho roubava botijões de gás e os oferecia aos moradores, enquanto Zé Miúdo administra bocas de fumo e encontra-se em constante guerra com os rivais que administram outros pontos de venda.
Uma comparação interessante é a analogia com a obra de João Antônio, autor do magistral Leão-de-chácara: as gírias continuam, o linguajar cheio de regras próprias e termos característicos se mantém, a vida dura se parece muito nas duas obras, mas entre os “merdunchos” de João Antônio e os “bichos soltos” de Paulo Lins há uma porção de transformações. Os vagabundos, trambiqueiros e trombadinhas que João Antônio retrata estão longe de serem tão brutais quanto Zé Miúdo e seus acólitos em Cidade de Deus. A diferença entre eles está inscrita nas tramas sociais, econômicas, políticas e culturais que se transformaram no tempo que separam um e outro.
Ao fazer tais comparações, é preciso guardar as devidas proporções, já que se tratam de escritores distintos, com objetivos distintos e concepções de literatura distintas. Ainda assim, contudo, a analogia é válida.
A construção da narrativa de Cidade de Deus é, tenho certeza, fruto de um longo processo de reflexão sobre seu fazer-se, seus objetivos, sua composição, seu papel perante a realidade que retrata. Isso fez com que o romance tenha sido pensado em suas diversas dimensões. O recorte de tempo, por exemplo, permite que Paulo Lins explore as mudanças como um processo, tanto do ponto de vista da Cidade de Deus como um todo, quanto do ponto de vista das vidas de alguns indivíduos nesse ínterim.
O crescimento de alguns personagens secundários, como Laranjinha e Acerola (mostrado na série e no filme Cidade dos homens), por exemplo, funciona não só como um ponto de orientação sobre a passagem do tempo, como também um artifício interpretativo que permite enxergar o desenvolvimento e os caminhos que um sujeito podia trilhar naquelas circunstâncias. Ao galgarem posições dentro da hierarquia do crime organizado, eles vão ganhando mais dinheiro e podendo ter uma vida melhor, em termos materiais e em termos de respeito perante o resto da comunidade. Ao mesmo tempo, no entanto, os crimes que cometem vão se banalizando e se tornando seu cotidiano, justamente porque, dentro de quadros mais amplos, eles não estão em desarmonia com um determinado continuum existencial marcado pela violência.
Além do recorte do tempo, há também uma delicadeza muito grande da parte de Paulo Lins quanto à recriação do ambiente da Cidade de Deus. O linguajar dos personagens e o uso amplo e frequente de gírias e expressões é um desses recursos. As descrições procuram transmitir aquela atmosfera em minuciosos detalhes. A junção dessa linguagem com as descrições primorosas do ambiente, ambas imiscuídas dentro da preocupação com o perceber da passagem do tempo, cria belos trechos, como o seguinte:
“Nuvens jogavam pingos sobre as casas, no bosque e no campo que se esticava até o horizonte. Busca-Pé sentia o sibilar do vento nas folhas dos eucaliptos. À direita, os prédios da Barra da Tijuca, mesmo de longe, mostravam-se gigantescos. Os picos das montanhas eram aniquilados pelas nuvens baixas. Daquela distância, os blocos de apartamentos onde morava, à esquerda, eram mudos, porém parecia escutar os rádios sintonizados em programas destinados às donas de casa, a cachorrada latindo, a correria das crianças pelas escadas. Repousou o olhar no leito do rio, que se abria em circunferências por toda a sua extensão às gotas de chuva fina, e suas íris, num zoom de castanhos, lhe trouxeram flash-backs: o rio limpo; o goiabal que, decepado, cedera lugar aos novos blocos de apartamentos; algumas praças, agora tomadas por casas; os pés do jamelão assassinados, assim como a figueira mal-assombrada e as mamoneiras; o casarão abandonado que tinha piscina e os campos do Paúra e Baluarte – onde jogara bola defendendo o dente-de-leite do Oberom – deram lugar às fábricas.” (pp. 10-11)
O ambiente duro da favela ganha outra forma, mas não esquece da dureza do lugar. Descrições como essa convivem com discussões recheadas de palavrões, violência, ameaças e tensão. A prosa de Paulo Lins não deixa de lado nenhuma das duas dimensões, congregando-as numa trama que busca contemplar aquela experiência, a qual, embora não recrie a sensação própria de lá estar, nos dá acesso a parte importante de suas tramas, tanto as mais espetaculares quanto algumas bem mais subjacentes e obscuras.