Tenho trabalhado, nos últimos dias, em uma tradução de um conto do tcheco Jaroslav Hašek. Hašek é mais famoso pelas peripécias do soldado Švejk. O conto leva o título de ‘Entrevista com o senhor censor‘ e trata-se, adivinhem, de uma visita a um censor – cuja fama estava em qualquer lugar entre o assustador e o patético. A ideia do narrador do conto era justamente passar a limpo a impressão que tinha do censor, que acaba por se mostrar mais banalmente estúpido do que o esperado.

Há pouco mais de uma semana, coincidentemente, fui a uma palestra com J. M. Coetzee (escritor sul-africano radicado na Austrália, autor de, entre outras obras, Diário de um ano ruim, Vida e época de Michael K. e Desonra) em que ele falava justamente sobre a censura e sobre os censores de suas obras.

Foi algo que ele descobriu à posteriori, mas ele conhecia seus censores. Alguns, pelo menos. Chegou a visitá-los. Até a abertura dos arquivos do apartheid e a ligação que recebeu de um pesquisador, nunca imaginou que seus livros tivessem sido submetidos ao crivo da censura. Menos ainda que os responsáveis por decidir se suas obras poderiam chegar às livrarias e bibliotecas poderiam ser conhecidos seus.

Mas, como o próprio Coetzee disse, o mais surpreendente talvez sejam justamente os relatórios a respeito da aprovação de suas obras. Nunca foi dito que estavam isentas de elementos que poderiam ser considerados subversivos. Em uma ocasião, citavam os censores, era uma crítica direta a coisas que aconteciam na África do Sul. Em outra, dizia outro, que era algo universal. Em ambos os casos, porém, recomendam que os livros sejam publicados, louvam a qualidade literária da obra e dizem às autoridades que não se preocupem: apesar de tudo são livros demasiado intelectualizados, que não seriam lidos pela grande maioria das pessoas, e que os únicos equipados com um aparato para entendê-los seria a intelligentsia, que – e aqui é adição minha – provavelmente já teria as opiniões ali expressas.

Lembro, ainda, de outro caso anedótico sobre a censura. É uma de minhas histórias favoritas e a maioria das pessoas já me ouviu contá-la vez ou outra. Trata-se do caso de Pal Vanarirak, escritora cambojana que trabalhou como censora e que era uma espécie de agente duplo. Ao mesmo tempo que censurava obras consideradas inadequadas pelo regime, fazia cópias a mão daquelas que lhe pareciam literariamente mais valiosas, alimentando a circulação ilegal da literatura. Censurava, também, as próprias obras – pois descobriu que o precisava ser escrito coincidia com o que precisava ser censurado.

Existem certas semelhanças gritantes entre os censores reais e o do conto. Apesar da coragem de Vanarirak, apesar do incentivo à publicação dado pelos censores de Coetzee, essa natureza de atividades me parece sempre ingratamente estúpida.

Mas, quiçá, o censor mais parecido com o de Hašek não faça isso por profissão. Somos nós mesmos, ao descartarmos tal autor ou obra que por algum modo nos desagrada. Isso pode ir desde a acusação de ser algo ‘superficial’ ou ‘comercial’ até o oposto, o ser ‘desnecessariamente complicado’, o tratar-se de ‘masturbação intelectualoide’. Pode, ainda, basear-se em outros critérios, menos literários – o autor gostava de uma marca de miojo e o leitor que o recusa, de outra, por exemplo.

O censor de Hašek, no fim das contas, tinha uma desculpa. Logo após nascer um médico míope não conseguiu ver qual lado era a cabeça e qual lado era a bunda, e acabou esmagando o crânio do pequeno.