O pensamento de Karl Marx foi o que mais influenciou o mundo no século XX. A ascensão da União Soviética com a revolução Russa de 1917 é somente um dos marcos que podem ser remetidos, guardando as devidas proporções, a influência do pensamento marxista, e isso sem contar toda a tensão que moldou a política, seja no que tange ao nazismo até a bipolaridade de horizontes ideológicos na assim chamada Guerra Fria. Por esses e outros motivos é que o livro de Juan Goytisolo, A saga dos Marx, carrega já em seu título, uma pretensão bastante ousada.

O escritor espanhol consegue lidar de maneira bastante interessante com um tema tão complexo e em disputa como esse. O livro se inicia quando um navio cheio de albaneses aporta de maneira atabalhoada em uma praia de grã-finos, fazendo com que os ricaços se encham de asco enquanto os albaneses buscam quaisquer formas de subsistência ou um passaporte para Dallas, lugar semi-mítico que conhecem do célebre seriado televisivo.

Os albaneses fogem dos desdobramentos do regime comunista que não proveu o que eles consideravam ser suas prioridades, tão distorcidas pelo contato com a mass media  televisiva ocidental (essa “quase-entidade onipresente” do mundo contemporâneo), por exemplo, que estapafurdiamente apresentava Dallas ou os Estados Unidos como terra da promissão e das oportunidades. De sua sala de estar, refugiado na Inglaterra, quem assiste a esse insólito evento, é o pai do socialismo científico, o próprio Karl Marx!

Escrito em 1993, o livro foi concebido em um período muito significativo para sua compreensão, pois fazia apenas dois anos que a União Soviética tinha sido oficialmente desfeita, quatro anos que o Muro de Berlim fora derrubado e que uma onda de pessimismo e descrença havia se abatido sobre os entusiastas do comunismo e da revolução. É possível apenas imaginar que tipos de sentimentos e sensações passavam pelo arquiteto teórico da sociedade comunista.

Goytisolo abusa de uma metalinguagem, já que um dos personagens do livro está justamente escrevendo um romance sobre a família Marx, tanto que no início são apresentados os membros da família para que o leitor possa se situar melhor. Marx é entrevistado pelo autor (nem tão) misterioso, que lida, além de toda a ressaca pós-queda do Muro, com os prazos de seu editor, com as intempéries vividas pela família Marx (que alterna cenas passadas no século XIX com cenas ficcionais de seu cotidiano no contexto do século XX), por uma feminista acusando Marx de ser um machista de concepções patriarcais e assim por diante.

O livro consegue traduzir bem a pilhagem que sobreveio ao “fracasso” da sociedade concebida por Karl Marx, em que todos pareciam querer apontar críticas e construir teorias sobre o sucesso do capitalismo e o já esperado destino de fracasso do comunismo. Observações descabidas de vários personagens, tanto da época de Marx como do presente do autor, pontuam a obra e delineiam a verdadeira balbúrdia tragicômica que tomou conta dos debates mundiais: acusações descabidas, afirmações absurdas, reclames de profecias supostamente proferidas etc.

A porção final do livro traz um debate televisivo a respeito da telenovela produzida sobre Marx e sua família no cotidiano (um exemplo de bizarrice pós-moderna), onde vários personagens se digladiam sobre o que fazer com a suposta herança malfadada do marxismo e do comunismo, que novos rumos a humanidade tomaria nesse novo contexto, entre outras questões.

O que acontece é que a superficialidade televisiva, tão emblematicamente característica da “sociedade do espetáculo” (para usarmos a terminologia de Guy Deborde), consegue distorcer essas questões e turvá-las ainda mais, anunciando os tempos incertos e confusos que se seguiriam (e que nos chegam até hoje).

Ao final, fica a dúvida, amarga como o humor de Marx ao assistir ao desembarque desenfreado dos albaneses, sobre as possibilidades (ou não) de se constituir novamente um campo de contraposição e debates tão amplo como o escopo de análises do pensamento de Marx proporciona.