por Marina Araújo

NOVA YORK – A primeira vez que li sobre o PEN American Center foi no livro de Paul Auster, Sunset Park, publicado em 2010. Tenho uma longa lista de livros preferidos de Auster, mas este toca fundo em bases identitárias. É um romance sobre Nova York e Estados Unidos pós crise econômica de 2008, mercado editorial e vida no Brooklyn. Uma personagem secundária, doutoranda em história na Universidade de Columbia, não consegue pagar o aluguel e complementa a renda trabalhando no PEN Center. A minha Nova York real é a Nova York da ficção de Paul Auster.

E ele estava lá no evento desta quarta-feira à noite do PEN Festival, que teve como tema bravura na poesia. Zbigniew Herbert, poeta polonês que viu seu país quase perecer na Segunda Guerra Mundial e sob o regime soviético, morreu em 1998, e foi o tema de abertura da noite. O evento teve a aura que surge com aquela rara sensação de que estamos experimentado algo que ultrapassa a coincidência; um ar “metafísico”, talvez. Afinal, Don DeLillo, em seu livro Cosmopolis, de 2003, traz como epígrafe parte de um poema de Herbert: “a rat became the unit of currency” em uma profecia da crise econômica que Paul Auster narrou em seu livro há três anos. E Cosmopolis não é dedicado, exatamente, a Paul Auster?

A poeta americana Mary Karr entregou Herbert em menos de 10 minutos como uma bomba. Olhava para a plateia enquanto recitava “be courageous when the mind deceives you be courageous/ in the final account only this is important” (seja corajoso quando a mente lhe engana seja corajoso/na conta final apenas isso é importante). Se alguém ali havia esquecido o que está em jogo quando se trata de bravura e poesia, o estouro acordou a lembrança. Herbert lutou na guerra, viu seu país ser invadido duas vezes, pela Alemanha e União Soviética, participou do movimento de resistência contra a ocupação, foi censurado pelo stalinismo, e nunca conseguiu deixar sua terra. Falar de bravura e poesia, com Herbert em mente, não é uma espécie de redundância? Os extremos do século XX parecem transformar uma opção artística em heroísmo quase mitológico. E ele manteve-se na Polônia, nos contou Karr, porque resistir à tirania era tanto uma decisão estética quanto política. É o que encerra o significado de ser poeta. “We had a shred of necessary courage/but in essence it was a matter of taste” (Nós tínhamos um fiapo de coragem necessária/Mas essencialmente era uma questão de gosto). Os poetas subsequentes foram vistos por mim sob esta ótica: suas atitudes políticas condicionadas por suas condições de poetas.

 

Eilleen Myles falando. Imagem de Oliver ao fundo
Eilleen Myles falando. Imagem de Oliver ao fundo

Apesar de Paul Auster ser a minha estrela da noite, sua apresentação do poeta americano George Oppen pouco dialogou com a reflexão agitada que estava tomando forma em mim. Ao falar do amigo poeta, e de sua relação com ele, Auster o transformou em um espelho, e mencionou apenas brevemente a postura política de Oppen, que era comunista, e teve que exilar-se por oito anos no México nos anos 1950. O que tive de Auster foi mais Auster; o que não é de todo ruim, especialmente porque sua fala preparou o terreno para alguns dos poetas seguintes, cuja poesia é ligada a Nova York e às tensões políticas e culturais contemporâneas dos Estados Unidos.

Os anos 1980 e 1990 testemunham uma notável criatividade artística em Nova York. A Downtown Scene energizou a cidade com novas formas de compreender arte, inclusive no campo da poesia. Mas a epidemia de AIDS também pertenceu a essas décadas, e aqui ela aterrissou cedo e brutalmente, dizimando boa parte da cena artística. O ativismo ressurgiu no movimento gay como uma tentativa de sobrevivência; a escolha de não ter de aceitar a sentença de morte fez surgir movimentos como Act Up, em meados dos anos 1980. Invadir prédios públicos, hospitais, pressionar laboratórios e a Organização Mundial da Saúde foi o ativismo que efetivamente levou a mudanças drásticas nas políticas públicas de saúde em relação à AIDS nos anos 1990.

Foi nesta situação de extremos também desesperadores que viveu e morreu o poeta homossexual James Merrill, que contraiu AIDS nos anos 1980 e morreu em decorrência do vírus em 1995. Ele foi tema da fala de Henri Cole. Mas Cole foi rápido ao afirmar que a bravura de Merrill não foi a bravura do ativismo. Merrill morreu em silêncio. Nada disse sobre sua doença ou opção sexual. O movimento gay se perguntava “como sobreviver a uma praga?” ao se referir tanto à doença quanto ao estigma social. Em Merrill, a incomunicabilidade e sofrimento da deterioração de sua saúde tornou-se uma experiência metafísica, íntima, não social: “what face should death wear, if not that of perfect love” (que face a morte deve usar, senão aquela do amor perfeito?) é a pergunta que ele se fez, referindo-se ao seu parceiro que provavelmente lhe passou a doença. Às vésperas de sua morte, a humilhante experiência do desdém social com o desespero da morte iminente trouxe a bravura do ascetismo.

Akilah Oliver, outra poeta das turbulentas últimas décadas do século XX, recusou o silêncio. Ela grita sua condição em cada linha da sua poesia: mulher, homossexual, negra, poeta. Em uma inspirada fala de Eileen Myles, também poeta da Downtown Scene, percebe-se que a metafísica é o maior inimigo de Oliver: “O que significa ser um assunto do pós-colonialismo” é a sua pergunta.  A acusação é irônica e bem humorada, e atinge o tratamento abstrato de seres humanos, a análise das “margens” que por vezes diminui a complexidade individual do artista.

O poeta russo Joseph Brodsky harmonizou o pólo metafísico com a preocupação política. Assim como Herbert, foi perseguido pelo regime soviético, julgado, condenado e exilado. Como Herbert, recusou a dar à sua postura política o crédito pela sua bravura poética. O poeta Edward Hirsch, que apresentou o poeta russo, destacou que a desobediência linguística, para Brodsky, era um desafio à ordem existencial, e não a contextos políticos específicos. A bravura da poesia é sutil, e mais que acusar a realidade de forma direta, parece fugir para a busca da transcendência.

Herbert teve uma atitude similar. Sua vida na Polônia ocupada trouxe a revolta com a realidade: prisão, tio baleado, tanques soviéticos nas ruas. Em seu poema “Relato da Cidade Sitiada”, o “inferior papel do cronista” relata os dias de desespero. Este era seu lado historiador, que quer testemunhar, entender a realidade. Os dias são monótonos, todos carregam a mesma qualidade apocalíptica: “segunda-feira depósitos vazios um rato tornou-se a unidade da moeda corrente”. No entanto, a crônica não traz salvação; a história não carrega a transcendência, não muda a realidade. A coragem de transformação está em escrever poesia, e mesmo este ato é pequeno demais para o mundo: “you were saved not in order to live/you have little time you must give testimony” (você foi salvo não para viver/você tem pouco tempo você deve dar testemunho).

A bravura da poesia parece ser aquele ato de resignação, a aceitação que o mundo exterior, grande e cruel demais, pode não ser vencido, mas testemunhado. Auster, DeLillo e o PEN Center estão hoje no papel de “dar testemunho”, acusar o que há de desesperador no mundo. A homenagem a Herbert neste evento foi à lembrança de tudo no poeta que é dolorosamente político. A solução de Herbert é simples: “Be faithful Go” (Seja fiel Vá).

Sobre a colaboradora: Marina é uma historiadora que estuda as relações entre poesia de vanguarda e punk rock em Nova York nos anos 1960 e 1970 para sua tese de doutorado. Estuda na UFRGS e no momento está morando em Nova York, pesquisando na New York University e escrevendo sobre literatura norte-americana contemporânea.