Vocês já devem saber que eu desenvolvi minha pesquisa de mestrado sobre as obras de Steinbeck publicadas nos anos 30. Vocês devem saber também que eu tenho muito apreço pela obra desse escritor e pelo senso de responsabilidade ao qual ele não buscou se furtar ao longo de sua carreira – embora esse senso seja motivo de controvérsias em alguns momentos. Diante disso é que apresento o texto da minha coluna de hoje: investigar um detalhe que considero muito emblemático acerca da obra steinbeckiana dos anos 30.

Recomendo que leiam o texto biográfico que escrevi sobre Steinbeck, que se encontra aqui. É interessante lê-lo, pois ajuda a situar Steinbeck num (des)continuum histórico bastante significativo para a compreensão de suas obras. O detalhe primordial aqui, entretanto, é que durante sua infância e adolescência, Steinbeck viveu na pequena propriedade dos pais, em Salinas, Califórnia, e partilhou do “mundo” rural onde trabalhava, vivia, aprendia as atividades agrícolas e o trato dos animais com o pai, etc. Dessa experiência, calcada nesse modo de vida, Steinbeck criou seus valores, pelos quais buscou orientar sua existência e, posteriormente, sua atividade literária.

A parte ocidental dos Estados Unidos (“o velho oeste”) era pontilhado por inúmeras pequenas propriedades, concedidas aos seus proprietários pelo governo estadunidense ao longo do século XIX como parte da famosa “marcha para o oeste”, na qual se buscava ocupar as terras ocidentais (e expulsar os índios num processo cruel) para expandir a produção e os mercados da época. A natureza bravia que tomava essas regiões foi domada pelos migrantes, que criaram formas e meios de conviver com ela de forma relativamente harmoniosa (salvo exceções, obviamente, como a matança de bisões, por exemplo).

Como parte integrante desse “mundo” no qual se criou e do qual seus valores e concepções se nutriram, a natureza representava para Steinbeck um dos elementos mais característicos de seu modo de vida. É por esse motivo que, conforme avançavam as novas relações econômicas sobre essa região – impulsionadas pela industrialização, a expansão dos mercados, a urbanização e a exploração extensiva e capitalista da terra – a natureza assumiu carga tão emblemática para seu pensamento e obra.

Quando nos voltamos para os três primeiros romances que Steinbeck publicou no início da década de 30, a saber, As pastagens do céu, O menino e o alazão e Ao deus desconhecido, vemos que a natureza assume as vestes de elemento de refúgio e idílio, nos moldes daquilo que Marshall Berman, em Tudo que é Sólido se Desmancha no Ar, chamou de “Paraíso Perdido”, ou seja, uma espécie de “escape” para um passado que se esvai conforme avança a modernidade e seus processos.

Não há passagem em que Steinbeck não cante loas à beleza, à paz e à tranquilidade do campo. Em todos os momentos nos quais o campo e a natureza são retratados, sua presença está entrelaçada com descrições rebuscadas e palavras que evocam sentimentos acolhedores, seguros e aconchegantes. Em Ao deus desconhecido, inclusive, a natureza corporifica o espírito do pai do protagonista, colocando Joseph Wayne como emissário da terra, uma espécie de elo de ligação entre a humanidade e a natureza, aqui retratada quase como uma entidade dotada de vida e caráter sagrados.

A recorrência de exemplos históricos e literários que constroem imagens semelhantes acerca da natureza não é pouca nem incidental. Basta olhar o cânone inglês, analisado de forma pormenorizada e sensível por Raymond Williams em O Campo e a Cidade na História e na Literatura: visões do campo – e da natureza – como local de realização plena, como um refúgio da iniquidade dos homens e das cidades, como verdadeiros retiros de aspectos místicos, inclusive, percorrem boa parte da literatura inglesa, como também de outras procedências (vide os românticos e árcades brasileiros, por exemplo, que desfiavam longuíssimas e inspiradas descrições de florestas e bosques).

Essa caracterização está longe de ser abstrata, ela é histórica em largas acepções. Um dos aspectos mais marcantes da exploração extensiva da terra nos tempos de Steinbeck é o fato de que ela assume caráter destrutivo em relação à natureza, logo, a modernidade que avançava sobre o “mundo” de Steinbeck – a nova dinâmica econômica estadunidense – atentava diretamente contra um dos pilares de seu modo de vida: a natureza.

Aquela relação semi-harmoniosa que ele experimentara – assim como tantos outros sujeitos – na sua infância, estava sendo solapada pelo avanço desse “novo” modo de produzir, de viver e de trabalhar. Voltar-se para a natureza era uma reação possível diante das circunstâncias, e foi o que ele fez em primeiro momento, embora posteriormente ele tenha modificado sua forma de ler a realidade.

Desse modo, se desenha na literatura de Steinbeck não um sentimento universal diante da natureza – embora a recorrência de exemplos seja imensa –, mas sim um sentimento calcado em uma base histórica, visto que enformava tanto ao autor quanto à sua obra. Se torna interessante, nesse sentido, que mesmo nos exemplos mais corriqueiros e aparentemente banais da vida e da literatura se insinuem a marca dos tempos e, portanto, da experiência histórica. A forma como pequenos indícios encerram profundos sentidos, sentidos que são tanto literatura quanto a vida do sujeito que escreve, são escolhas estéticas que não deixam de ser, também, epistemológicas.

As relações entre a história e a literatura são de fato misteriosas.