André, você que está nessa onda de ler os brasileiros contemporâneos, você precisa ler o Sérgio Sant’Anna. Não há ninguém no Brasil que esteja fazendo algo tão importante em termos de literatura quanto ele. O Sérgio Sant’Anna não é só o melhor escritor brasileiro dos últimos anos: ele é um dos melhores escritores brasileiros de todos os anos. E é divertidíssimo de ler.

Você deve estar pensando que eu estou babando ovo para o Sérgio Sant’Anna. Você acertou. Eu estou babando ovo para o Sérgio Sant’Anna. E faço isso com um objetivo em mente: quero que você venha comigo à palestra que ele vai dar aqui em Porto Alegre no próximo dia 18. Tenho certeza de que vai ser excelente, mas preciso de uma companhia. Não gosto de ir num evento desses e depois não ter ninguém com quem comentar.

Eu me lembro de uma vez que o Philip Glass também veio dar uma palestra em Porto Alegre. Deve fazer um cinco anos. Na época, eu estava sem trabalho e não tinha dinheiro para pagar o ingresso. Por isso, decidi encontrar um Amigo Desses que Preferem não Ser Citados (e que tinha ingresso) logo na saída do colóquio, para que ele me contasse como tinha sido antes que desse tempo de esquecer muita coisa. Esse Amigo Desses que Preferem não Ser Citados saiu de lá indignado porque “o Philip Glass disse a maior asneira que eu ouvi esse ano: que um artista, se quiser ser um artista diferenciado, deve obrigatoriamente usar em suas obras ‘um colorido local da sua terra de origem’”. (Depois, fiquei pensando que o ADqPnSC só devia andar com gente muito inteligente.)

É que, para o ADqPnSC, o artista, para ser um artista diferenciado, tinha que ser capaz de inventar tudo do zero, ser capaz de criar uma obra que não pudesse ser rastreada. Se fosse um escritor, tinha que ser capaz de escrever um livro que não nos deixasse perceber nem seu país de origem, se era velho ou jovem, se era homem ou mulher.

Na época, o ADqPnSC ainda não sabia, mas ele bem que podia estar falando do Sérgio Sant’Anna.

O curioso é que o Philip Glass também podia estar falando do Sérgio Sant’Anna.

É que o Sérgio Sant’Anna é um novo autor a cada conto. Vai do carioquismo mais explícito e intraduzível quando fala de futebol à crítica mais universalista quando fala de artes visuais. Transita de um extremo ao outro, mas você o reconhece porque o encontra sempre ali, no extremo. Em uma única página, salta do drama do soldado que luta contra as forças do czar à sátira do ensino de literatura nos colégios. A única constante de sua obra é o improvável. Não há conto que se esgote no enredo proposto – há sempre uma virada de última hora, um intertexto revelado que chega bem no momento em que você achava que já tinha entendido tudo. Até quando não há uma virada de última hora você se surpreende pela ausência. É uma literatura do desnorteamento. O Sérgio Sant’Anna é um virtuoso que faz as coisas mais difíceis parecerem as mais fáceis. A única coisa que ele não parece capaz de fazer é escrever um conto que seja “só um conto”. Para comprovar isso, sugiro especificamente que você leia o texto Conto (não conto).

Por isso, André, sugiro que você leia o Sérgio Sant’Anna e venha à palestra comigo. Pega o 50 contos e 3 novelas 1, que é um apanhado de tudo o que ele fez de melhor. Se estiver sem muito tempo, leia ao menos O Concerto do João Gilberto no Rio de Janeiro. Daí, mesmo se ele chegar lá no dia, se acomodar na cadeira e não proferir uma única palavra, a gente vai achar que é metalinguagem de primeira e sair dizendo que foi do caralho.

Um abraço,

Bruno Mattos

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Meu amigo Bruno,

 

Seguindo cegamente teu conselho de ler o 50 contos, fico tentado, nesse primeiro contato, a caracterizar o trabalho do Sérgio Sant’anna (Serjão, daqui pra frente, porque já me sinto íntimo) com uma literatura de meta-vida. Mas dizer meta-vida, você pode me corrigir, não faz o menor sentido. Por mais que eu a racionalize, ela não deixa de me encher o saco, como podem atestar os tufinhos de cabelo branco que timidamente vão surgindo na minha cabeça ou a dor extrema que me acomete após 7 minutos de futebol jogados no ataque (das ressacas nem comento que só lembrando já fico assombrado com a sua crescente força nos últimos tempos). Dou um passo ao lado, então, e chamo de meta-existência – que já é meta por natureza e não incorreremos em problemas futuros.

Dito isto, preciso revelar minha empolgação com o modo como Serjão resolve problemas tão caros à condição pós-moderna na literatura de forma bem eficaz. Estou aqui me referindo, claro, àquelas questões de autorreferencialidade, metaficção, autoconsciência narrativa. O que é um grande problema para alguns autores, cito aqui o amigão DFW que está mais em evidência e eu sei que tu leu, o Serjão resolve quase com um jeitinho, uma malandragem erudita feita antes do café da manhã. Como tu bem disse na correspondência, ele faz coisas complicadas parecerem simples. Eu diria mais: tais problemáticas estão formuladas de maneira que não incorram em grandes dores de cabeça quanto ao que fazer com elas, é tudo uma questão de que forma usar. E ele mesmo diz, no conto que tu me recomendou, “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, que o modo de abordar essa ideia de metaliteratura não é por uma matriz histérica, e sim utilitária. Um escritor que se pretende autobiográfico em algum nível, inevitavelmente irá escrever sobre o fato de escrever. A estrutura narrativa estará, portanto, desnudada. Grande problema pro Serjão? Grandes coisa! Ao fragmentar a narrativa sobre o João Gilberto ele acaba falando muito sobre literatura, sobre seu modo de construção, mas vai muito além. Fala de um artista que já se tornou metalinguagem da nossa cultura, de um ensaio que vale mais que um espetáculo, dos espaços marginais onde o pensamento se desenvolve.

Então eu fico pensando que esse lance da autorreferencialidade só ter um caminho, que é o do solipsismo cínico quanto às estruturas que governam a narrativa (e o mundo, se quiseres assim), só é uma questão formal, tratada às vezes com aquela histeria reflexiva de apartamento fechado que nos faz querer gritar: “morreu a literatura, a literatura morreu!”. Não sei se é sinal dos tempos que convencionamos chamar de pós-modernos, mas se for, reafirmo a máxima: pós-modernismo é coisa de primeiro mundo. A realidade aqui tende a ser mais cruel e absurda em tantos níveis que esse malabarismo conceitual acaba passando ao largo. É fato consumado essa meta-existência, não adianta chorar sobre a realidade derramada.

Tudo isso para te recomendar, se é que tu não tenha lido ainda, os contos que na minha opinião se encaixam nessa problemática e que a abordam de alguma maneira que eu ainda não tinha visto. O Discurso do Método é a própria expressão de que, tendo as ferramentas conceituais apropriadas (ou seja, um léxico científico bem afinado), se pode transformar até mesmo um trabalhador limpando janelas em um suicida em crise existencial aguda. Ou n’O Duelo, onde a narrativa pula de um romance do personagem-escritor para a sua “vida real” só com a mudança de uma letra no nome de sua namorada. Ou ainda, no conto político definitivo da literatura brasileira, Notas sobre Kramer, por Manfredo Rangel, em que a construção de um líder verdadeiramente terceiro-mundista deve passar necessariamente pelas notas dispersas de um colunista político – o único lugar onde ele existe propriamente. Leia e me responda com suas colocações, fico ansioso para saber pelas nossas diferenças de que forma esses contos te afetam.

No mais, faz tempo que não fico tão empolgado com uma palestra, mesmo que funcione apenas para poder apertar a mão de um grande escritor.

BEST,

André Araujo.

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6ª FestiPoa Literária.

Essa troca de cartas é um aperitivo para a mesa com o Sant’Anna, que será realizada às 16h30 do próximo sábado, 18/05, na Casa de Cultura Mario Quintana, auditório Luís Cosme, 4º andar.

16h30 – Narrativas de vertigem e convulsão
JOÃO GILBERTO NOLL e SÉRGIO SANT’ANNA
Mediação: MARCELINO FREIRE

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Infelizmente saiu a notícia de que Sérgio Sant’anna não poderá comparecer ao FestiPoa. Marcelino Freire fará uma entrevista aberta com João Gilberto Noll.

  1. os contos citados aqui encontram-se nesse volume