Nota dos editores: Este texto é parte do especial em memória de Sérgio Sant’Anna. Ao longo da semana, publicaremos todos os dias homenagens ao autor carioca.

Uma livraria asséptica de shopping center, com chão de carpete e prateleiras de plástico, em um bairro nobre de Porto Alegre, onde dois amigos esperam enquanto um homem percorre as fileiras de best-sellers em busca de alguma coisa que não diz o que é, os instantes que passam e os amigos amigos se entreolhando até que o homem retire algo da estante e passe depressa ao lado deles para entrar na fila do caixa sem ser visto? Os instantes seguintes, o homem dando o livro de presente para o mais velho dos amigos, o pressentimento de que uma relação duradoura está surgindo bem ali, no ato, mediada a princípio por 50 contos e 3 novelas, de Sérgio Sant’Anna, um nome novo para o mais jovem dos dois, e que se estenderá ao longo de anos, cidades e leituras futuras?

               Não, não é bem isso.

Então o fórum em uma rede social esquecida e obsoleta, prestes a ser desativada, ainda cultivado por um grupo pequeno, mas fiel, de frequentadores que se recusam a deixá-lo às moscas, e ali um professor de literatura comentando por acaso que “Sérgio Sant’Anna é o nosso único escritor nobelizável”? O amigo mais jovem da cena anterior, chamemo-nos de O Autor, lendo o comentário e reconhecendo o nome visto alguns meses antes no livro de capa cinza e rosa dado de presente na livraria do shopping center como retribuição por uma estadia, e enfim decidindo que precisa lê-lo, o que de fato fará algumas semanas depois? As primeiras páginas, onde um goleiro revê seu erro crucial de diferentes perspectivas após a derrota em uma final de campeonato, algo tão grandioso e ao mesmo tão banal, a representação perfeita de como insistimos em nossos equívocos, mesmo os menores, os mais insignificantes, e o entendimento imediato de que ali, naquelas páginas, há algo diferente de todo o resto, algo cuja leitura acabará se tornando parte de quem O Autor é?

               Não, não é bem isso.

Talvez um site literário aceitando textos de colaboradores externos, o envio por parte do Autor de uma resenha equivocada e estapafúrdia de Páginas sem glória, texto nem à altura nem do livro, nem de Sérgio Sant’Anna, nem do site, mas que acaba aceito por descuido e determina a entrada do Autor na equipe do site que, muitas resenhas e muitos anos depois, deixará de ser um site para ser um grupo de amigos disfarçado de site? Um texto que passa batido, como é de praxe, mas terá consequências muito mais profundas na vida do Autor, e do próprio site, que anos mais tarde deixará de ser disfarce e voltará a ser site em certa medida por iniciativa do Autor, embora ele ainda não saiba disso, não imagine isso, não conheça os demais colaboradores, não saiba que muito em breve os colaboradores não serão mais colaboradores, mas um grupo de amigos próximos seus que estará ao seu lado durante os piores anos de Brasil que já despontam no horizonte, embora ele ainda não saiba ver isso?

               Não, não é bem isso.

Pode ser um colega de faculdade, um convite para uma visita, uma conversa de madrugada e a ideia de escrever um texto em forma de carta para celebrar outra vez aquela obra persistente, o mesmo compêndio de 50 contos e 3 novelas, o índice introdutório para a obra de Sérgio Sant’Anna, como forma de antecipar a cobertura de um evento no qual, enfim, o Autor e o colega de faculdade verão o rosto por trás daqueles contos e novelas? O desfecho frustrado do mesmo evento ao qual, por motivo não divulgado, Sérgio Sant’Anna não comparece, e a sensação compartilhada entre o público de que melhor assim, ninguém mais apto a faltar ao evento em sua homenagem que o autor de O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, uma cadeira vazia que se torna uma experiência marcante, uma reflexão presencial sobre a pertinência e o significado da ausência?

               Não, não é bem isso.

Muitos anos depois, uma tenda improvisada em um aeroporto desativado de Foz do Iguaçu onde, alheio à ameaça de tempestade, Sérgio Rodrigues comenta seu A visita de João Gilberto aos Novos Baianos e a alusão clara ao xará e seu interesse por futebol leva o Autor a comentar que Sérgio Sant’Anna seria torcedor do América, embora todos seus leitores saibam que ele é Fluminense? A correção elegante desse outro Sérgio, e a vergonha do Autor não por cometer um erro bobo, mas por se ver distanciado de um escritor que foi determinante em sua vida, o que o levará a reler uns cinco de seus livros ao longo dos meses seguintes?

               Não, não é bem isso.

De repente, a sensação de que Sérgio Sant’Anna há muito se tornou uma figura incompatível com o mesmo Brasil que o tornou possível, um país autofágico, uma máquina de moer gente, para recorrermos ao clichê que se para ser clichê algum motivo deve ter, e de que se tornou ainda mais incompatível com sua condenação admirável e inegociável da barbárie que nós, brasileiros, tão afeitos a falarmos de nós mesmos na terceira pessoa, vivemos hoje, isso por causa de nós, brasileiros, e apesar dele, Sérgio Sant’Anna, e de gente como ele? Alguém de grandeza incompatível com o ambiente social em que foi gerido, algo paradoxal e paradoxalmente comum entre os gênios brasileiros, um fenômeno do qual João Gilberto é apenas mais um exemplo?

               Não, não é bem isso.

Ou quem sabe uma cidadezinha no interior do Rio Grande do Sul, a casa simples onde outro amigo está reunido com a família nestes tempos de quarentena e, casualmente, comenta com o Autor que levou poucos livros, tendo subestimado o tamanho do buraco em que nos encontrávamos, esta fossa abissal encontrada por acaso no fundo do poço? O envio secreto de um exemplar de 50 contos e 3 novelas para este amigo, que por atrasos e infortúnios chega na casa dele no mesmo dia em que Sérgio Sant’Anna é internado no Rio de Janeiro? O comentário do amigo, “que dia para receber isso, né?”, e a comprovação de que é quase impossível driblar a tristeza no Brasil de hoje?

               Não, não é bem isso.

Deve ser a sensação de que ter vivido a última década do Brasil, mais precisamente de 2012 para cá, é como aquela canção de Dorival Caymmi em que o camarada só precisava fazer uma viagem curta, de Olhos d’Água a Alagoinha, e decide levar sua nega, sua filhinha, seu tatu-bola filho do tatu-bolinha, seu facão, suas quatrocentas galinhas, vinte sacos de feijão, trinta sacos de farinha, tudo o que tinha, enfim, mas mesmo em um percurso tão breve dá tempo de sua nega ter bexiga, sua filha, catapora, roubarem o facão, morrerem o tatu-bola e todas as galinhas, o feijão apodrecer e a farinha mofar? Porque é, afinal, essa a sorte de quem mora sobre um imenso cemitério indígena e deu o azar de nascer na família errada, ou até nasceu na família certa, mas às vezes sai na rua e se vê cercado de gente ruim, sedenta por sangue, por violência, por punição por tudo para todos, exceto para si próprio?

               Não, não é bem isso.

“E sim, talvez, finalmente, um outro homem sozinho em seu apartamento e que procura escrever” nesta manhã “um texto, buscando palavras para cenários talvez por palavras indizíveis, mas como se sua tarefa fosse esta, buscar o impossível”, isto é, após ter acordado com a notícia da morte de Sérgio Sant’Anna, buscando sentido na morte, buscando razão na injustiça, buscando um caminho para o luto por alguém que jamais conheceu, mas que lhe é íntimo, buscando a resignação necessária para cortar a última palavra quando voltar a repetir que Sérgio Sant’Anna é o maior contista brasileiro vivo? E perceber que, durante todos esses anos, todos esses amigos, os dois lá do início, o colega de faculdade, os disfarçados de site, o isolado com a família, são parte do que ainda lhe dá a força necessária para sair da cama todas as manhãs, mesmo em um lugar abominável, mesmo em tempos abomináveis, e que sem Sérgio Sant’Anna ele talvez não tivesse muitos desses motivos, o que é muito mais do que se pode pedir de um escritor? Mas Sérgio Sant’Anna não foi um simples escritor: foi quem melhor soube captar os instantes que fazem do Brasil às vezes um lugar bom, debruçando-se sobre a parte que serve de consolo, a essência do que vale a pena, mesmo que nela haja também um pouco de feiura, como “nas obras dos pintores raros que conseguiam captar o tal momento, o tal cenário, a tal cor, que é aquilo que estamos sempre desejando para as palavras, escrevendo”, e o Autor chora enquanto escreve isso, o que nunca aconteceu antes, para logo depois saber que não, não é bem isso.