Até uma semana atrás, quando assisti a uma palestra sua com o título Ficção e Censura, tudo o que eu sabia sobre J. M. Coetzee era o que ele próprio havia me contado. Nunca havia lido textos sobre sua obra, nem acessado o verbete sobre ele na Wikipedia. Sequer havia visto uma foto sua. Se fosse eu quem estivesse sentado na mesa ao lado da sua, no restaurante vegetariano em Porto Alegre ao qual o levaram para almoçar no dia da conferência (e é um lugar ao qual costumo ir, simples e não muito caro – ao menos essa experiência mínima eu poderia ter compartilhado com o Nobel), é bem possível que não o tivesse reconhecido. O que eu sabia era o que qualquer um poderia saber, e que eu lera havia muito nas páginas de Verão, Diário de um Ano Ruim e, mais recentemente, Juventude.
É magro, tem membros ágeis, mas ao mesmo tempo é mole. Gostaria de ser atraente, mas sabe que não é. Falta-lhe alguma coisa essencial, uma definição de traços.1
Chego cedo ao auditório da UFRGS, a fim de encontrar um bom lugar para sentar. Estou acompanhado por dois amigos, igualmente leitores de Coetzee, igualmente não muito interessados na vida do escritor sul-africano. Há um certo incômodo entre nós, como se não soubéssemos muito bem por que estamos aqui. Somos grandes admiradores de Coetzee, o personagem recorrente nos livros de John Maxwell Coetzee; conhecemos suas fraquezas, seus dilemas e suas culpas. Mas do seu criador não sabemos o que esperar.
Mas felizmente artistas não precisam ser pessoas moralmente admiráveis. Tudo o que interessa é que criem grande arte.
Enquanto isso, falo alguma coisa sobre Juventude. Para mim, o mais interessantes do livro é o relato dos esforços de Coetzee para se tornar um artista, que surge um pouco desvinculado da realização de uma obra. Coetzee parece não acreditar ser possível tornar-se um artista por meio da escrita de um livro excepcional; busca antes se tornar um artista para, apenas então, ser alguém capaz de escrever livros excepcionais. A produção artística aparece como apenas uma das muitas facetas de ser um artista, e quase como uma faceta dispensável. Talvez seja por isso que a maior parte de seus livros recentes seja uma espécie de relato desse Coetzee artista criado a duras penas pelo escritor. Um pouco à moda de Duchamp, talvez?
Um dos meus amigos diz que discorda totalmente, mas não tem tempo de responder, pois as luzes do auditório são reduzidas. Não houve mais do que dez minutos de atraso. As formalidades do vice-reitor da universidade são rápidas e indolores. O conferencista é anunciado. Do lado esquerdo do auditório, sob aplausos, sai um homem magro, de membros ágeis e, ao mesmo tempo, mole. Ele chega até o microfone, e a plateia fica em quase-silêncio. Ele ocupa então a mesma posição na qual permaneceria pelos 45 minutos seguintes. À primeira vista, não parece especial: apenas mais um homem alto e de aparência triste que, como o protagonista de Juventude, parece ter sido velho desde muito cedo.
Sabe que ela não gosta dele, acha que é puritano, desprovido de joie de vivre, desprovido de agilidade verbal.
John Maxwell Coetzee, o escritor vencedor do Prêmio Nobel, é também um grande orador. De alguma maneira, parece desaparecer por trás do texto, ainda que o texto discorra exclusivamente sobre sua própria experiência. Ainda assim, não assume uma postura passiva. Seu tom de voz é sóbrio, mas seu domínio narrativo da fala é incrivelmente preciso (ele, diz-se, pediu que o sistema de som fosse ajustado de modo que mesmo a parte do público que utilizasse o serviço de tradução simultânea fosse capaz de ouvi-lo). Em poucos minutos, ele expõe ao público a situação vivida por um artista na África do Sul durante o apartheid, onde “achávamos que tínhamos sorte caso o governo ignorasse o que estávamos fazendo”.
A história se passa na África do Sul. Ele se inquieta por ver que ainda está escrevendo sobre a África do Sul. Preferiria deixar para trás seu eu sul-africano, como deixou para trás a própria África do Sul. A África do Sul foi um mau começo, uma desvantagem.
A contextualização serve como pano de fundo para que ele introduza o tema central da palestra: a censura da produção ficcional. John Maxwell Coetzee conta o que encontrou em três documentos a que teve acesso após o desmantelamento do regime do apartheid em seu país de origem. Três relatórios escritos por censores acerca de livros escritos por ele. A partir disso, procura esboçar um perfil desses censores: pessoas que se viam como trabalhando por seu país em épocas difíceis, sem serem reconhecidos ou agradecidos por isso, e, ao mesmo tempo, ajudando a manter uma frágil ordem social e a proteger os artistas de seu país. Para John, nada poderia estar mais distante da realidade, e esse equívoco é extremamente pernicioso.
Afinal, os censores não eram pessoas tão diferentes “de nós”, ele diz, aproximando-se do público. Não eram burocratas sem nenhum contato com a arte: eram leitores e acadêmicos. Dois deles, embora ele não soubesse à época, até eram conhecidos seus. John chegou a tomar chá com uma das censoras em uma visita à casa dela. Havia outro que lecionou na mesma universidade que ele – chegaram a ser contemporâneos. Não eram monstros, não eram filisteus. Eram pessoas como nós, e como ele. Em um momento de raro otimismo, o escritor chega a ponderar se um de seus livros, que tratava explicitamente da tortura em regimes políticos opressores, não teria sido liberado pelo censor porque este teria sido influenciado pela leitura. John gosta de pensar que sim.
Após o término da palestra, senta-se para tortuosamente assinar centenas de livros. Não temos nenhum livro seu ali, e assim conseguimos escapar do que, para o Coetzee dos livros que lemos, seria um tremendo mal-estar.
A loucura dele, se for seu destino sofrer de loucura, será diferente – sossegada, discreta. Vai sentar-se num canto, rígido e curvado, como o magistrado da gravura de Dürer, esperando pacientemente passar sua temporada no inferno. E, quando tiver passado, estará tanto mais forte por ter resistido.
Enquanto caminhamos em frente ao campus, um dos meus amigos busca digerir o que acabamos de ouvir. Para ele, a mensagem da palestra pode ser resumida em uma única frase (e aqui cito ele):
– O importante é, após nos levantarmos a cada manhã, nos olharmos no espelho e perguntarmos a nós mesmos: de que lado você está?
Respondo que a questão me parece mais complexa. O risco maior, me parece, não é escolher um lado errado: é estar de um lado errado e não saber.
Os ânimos se exaltam. O terceiro amigo encontra o momento certo para intervir:
– Vamos nos acalmar. Talvez, nem seja isso. O cara (assim como o Coetzee personagem) é do tipo que está falando uma coisa quando, na verdade, quer que a gente se dê conta de outra. Isso toma o seu tempo, e é uma questão pra ser resolvida por cada um – e não aqui, tão rápido e em uma discussão.
Em silêncio, os dois concordamos com a cabeça.
A vida da mente, pensa consigo: é a isso que nos dedicamos, eu e esses outros viandantes nas entranhas do Museu Britânico? Haverá um dia uma recompensa pra nós? Nossa solidão irá embora, ou será a vida da mente a sua própria recompensa?
- Todas as citações foram retiradas da edição mais recente de Juventude ↩