Ao que tudo indica, gosto de antagonismos, dualismos e paradoxos: duas forças que se enfrentam e resultam em algo que não parece fazer sentido. Lá vou eu, tentar explicar: o texto que você está prestes a ler, por exemplo, nasceu do embate entre minha vontade louca de recomendar um livro para todos os amigos – inclusive, dando-o de presente em seus respectivos aniversários – e o desejo de que ninguém saiba nada sobre o mesmo antes de lê-lo.

Como proceder, então? Como recomendar fortemente um livro de modo a não citar spoilers sobre o enredo, a fim de preservar ao máximo a experiência de leitura? Pior: como fazê-lo quando o livro está há algumas semanas na lista de mais vendidos (e, portanto, já angariou atenção suficiente de jornais e revistas, bem como de leitores que passeiam pelas livrarias e gostam de folhear os livros e ler as orelhas destes)?

Esta é minha tentativa. Não quero que aconteça a você o mesmo que ocorreu comigo ao ler o subtítulo de uma reportagem de uma revista semanal – não cheguei a lê-la, mas o subtítulo foi o suficiente para estragar um pedacinho importante da leitura. Você foi avisado: outras revistas, piores, já mandam o spoiler no título da matéria.

* * *

Eu sabia que leria o livro. Até já tinha começado a conferir a amostra que baixei em meu Kindle quando soube que a Intrínseca lançaria o título em português. Preferi aguardar então.

A razão principal para eu saber que leria o livro é simples – e não foi porque o capítulo inicial que li em inglês já tinha me agradado bastante, com uma descrição bela-instigante-e-meio-que-sinistra a respeito do formato da cabeça de Amy, a esposa exemplar de Nick, o responsável pela descrição. 1

Quando penso em minha esposa, penso sempre em sua cabeça. No formato dela, em primeiro lugar. Quando nos conhecemos, foi na parte de trás da cabeça que eu reparei, e havia algo adorável nela, em seus ângulos. Como um grão de milho duro e reluzente, ou um fóssil no leito de um rio. Era o que os vitorianos chamariam de uma cabeça belamente formada. Dava para imaginar o crânio com bastante facilidade.

Eu reconheceria sua cabeça em qualquer lugar.

E, não, também não li o livro porque ele desbancou Cinquenta tons de cinza nas listas de mais vendidos lá fora. Já bastava ter lido o próprio Cinquenta tons de cinza. E ter lido o Toda sua porque era um mommy porn “mais bem escrito que Cinquenta tons de cinza”. 2 Em suma: não precisava de mais um livro que tivesse relação alguma com a literatura de E.L. James.

A minha razão principal era a seguinte: Tournament of Books 2013. Este ano, três livros participantes da competição já tinham sido traduzidos para o português. Dois eram da Intrínseca: além de A culpa é das estrelas, 3 Garota Exemplar foi lançado no Brasil durante 4 o torneio. Eu ainda não fazia ideia de que o romance de Flynn seria eliminado apenas na segunda semifinal (zombie round!), perdendo apenas para o grande vencedor do ano. 5 Creio que o ToB seja meu prêmio literário favorito, num empate técnico com o Pulitzer de ficção.

Como eu queria acompanhar pela primeira vez as partidas dessa competição em tempo real (sem, contudo, saber antecipadamente detalhes importantes da trama), comecei a ler o quanto antes. 6 A prioridade que dei a esse livro veio com um bônus: uma amiga também o lia naquela época; ou seja, eu tinha com quem comentar, algo que é sempre bom. 7

No geral, detesto quando me obrigo a ler um livro. Nunca acho que a leitura fluirá rápido o suficiente para os meus propósitos. Porém, pelo menos nesse caso, isso não seria exatamente um problema: eu tinha TRÊS dias para montar um seminário a respeito de Noturno indiano, de Antonio Tabucchi, quando comecei a leitura.

E aí, quando me dei conta, eu tinha DOIS dias para montar um seminário a respeito de Noturno indiano, de Antonio Tabucchi. Tranquilo: eu já tinha lido e resenhado o livro para o Posfácio meses antes. Podia, então, ler só mais um capitulozinho…

E aí, quando me dei conta, eu tinha UM dia para montar um seminário a respeito de Noturno indiano, de Antonio Tabucchi. Pffff, ainda estou de boa: duas das disciplinas do semestre passado tinham me informado que eu era um aluno nota A. Em um dia conseguiria fazer aquilo, susse no mousse. Podia, então, ler só mais um capitulozinho…

E aí, quando me dei conta, eu estava NO DIA do seminário a respeito de Noturno indiano, de Antonio Tabucchi, sem NADA pronto. Não apenas isso: tive uma baita insônia na noite anterior, provavelmente pensando nos personagens de Gillian Flynn. Estava totalmente incapacitado de dar a mínima para o Tabucchi-whatever.

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Não preciso dizer que o seminário foi um desastre. Até porque eu já tinha dito isso em meu texto com dicas de livros para a sala de espera. 8 No mesmo texto, também falei brevemente sobre Garota Exemplar. 9

O que mais posso dizer sobre o livro sem dar o mínimo spoiler? (Atenção, na nota de rodapé a seguir há umas duas coisinhas que gostei de ver no livro, mas sobre as quais não posso falar porque requereriam spoilers mínimos e eu não sou obrigado.) 10

Posso dizer que uma escritora que adoro ficou das duas às seis da madrugada lendo o livro, sem conseguir largar. Posso dizer que uma tia, que não lia literatura há anos, retomou o gosto pela coisa a partir desse livro. 11 Posso dizer que ele foi semifinalista do Tournament of Books de 2013, perdendo só para o campeão do torneio. Posso dizer que, sim, ele virou uma das minhas opções fáceis de presente de aniversário. Posso dizer que a resenha em gif sobre o romance é mais legal do que ler 140 caracteres de spoiler sobre a trama – acredite, em um tweet dá pra estragar MUITA coisa.

Então é só isso o que eu digo. Pera, não, tem mais uma coisa: acredite em mim quando falo que é bom estar com tempo livre quando resolver lê-lo. Você realmente não precisa pagar mico num seminário para aprender a confiar no resenhista. Eu aprendi a minha lição. Tente aprender comigo, ok?

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P.S.: Estive na turnê da editora quando esta passou por Curitiba e tenho uma boa e uma má notícia. A boa é que a editora já tem mais dois livros da autora na manga. A má é que Dark Places está previsto para o primeiro semestre de 2014, somente.

  1. Tente resistir a uma possível risada; não, ele não está chamando a esposa de “cabeção”.
  2. Ainda pretendo escrever comparando-os.
  3. Não conheço alguém que tenha lido e não tenha amado.
  4. Ou pouco antes, não lembro.
  5. The Orphan Master’s Son, que foi lançado como Jun Do pela editora Lafonte.
  6. Só depois descobri que havia uma política de ausência de spoilers a ser seguida pelos resenhistas.
  7. No final, ela resenhou o livro; seu texto foi um dos melhores que li sobre Garota Exemplar, pau a pau com os juízes do ToB. Fora que ela tem o costume de deixar bem claro em quais partes da resenha há spoilers, para que possamos evitá-los.
  8. “Levei o primeiro por desencargo de consciência: tinha que refazer um seminário a respeito do romance, pois o primeiro tinha sido um desastre.”
  9. “(…) não recomendo, por exemplo, que ninguém comece a ler Garota exemplar, de Gillian Flynn, quando tiver muita coisa para resolver – ou um compromisso logo em seguida (!); esse, sim, é um baita thriller, que você não consegue largar até chegar ao fim e que atrasa toda a sua vida”
  10. Eu sei que às vezes me irrito com todo o lance da discussão sobre literatura na própria literatura, mas já percebi que, quando isso está ligado a uma história que me prende, ela não incomoda. É o caso de Garota exemplar, Cordilheira, de Daniel Galera, e de muitos outros. Além disso, gosto de perceber como o mundo contemporâneo está sendo retratado em obras literárias: tem muita gente escrevendo bem e colocando, no meio dos livros, a Wikipédia (Juliet, nua e crua, de Nick Hornby), as mudanças do jornalismo pós-internet (o livro desta resenha), até a Microsoft e o TED e as picuinhas tecnológicas (Where’d You Go, Bernadette, de Maria Semple). Não se preocupando se as obras ficariam datadas e, assim, perderiam a chance de “ficar para a posteridade” – como se não houvesse a possibilidade de que, no futuro, haja quem queira pesquisar essas coisas, como hoje tem quem pesquise a danada da canção popular que Leopold Bloom cantarolava em Ulysses.
  11. Mais sobre isso numa coluna futura.