Acho fantástico como Jorge Luis Borges consegue construir todo um mistério somente insinuando coisas e dando espaço para que o leitor construa o resto. Ele sugere – com um timing magnífico, que sabe quando avançar e quando parar -, deixa que as insinuações fermentem e que o leitor sinta-se como se todo um mecanismo girasse logo por debaixo da narração, concorrendo para sua imposição magnética.

Ele faz isso em Ficções, e segue um caminho similar em História universal da infâmia. O livro é formado por várias histórias, todas elas sobre personagens controversos, sejam eles históricos ou ficcionais. As histórias são curtas, pequenas mesmo, mas Borges, apesar de sua brevidade, transparece uma porção de elementos circundantes à trama principal que mostram como seu processo de composição é tão complexo quanto é lastreado em uma pesquisa e erudição dignas de nota.

De um modo ou de outro, seja por pirataria, roubo, fraude ou assassinato, os personagens das historietas de História universal da infâmia possuem algum pecado ou algo sombrio constituindo suas vidas. Não digo sombrio necessariamente como sinônimo de trevas ou de demoníaco, mas algo que viola as regras da boa conduta ou da boa convivência em sociedade. Fato é que essas condutas são subjetivas o suficiente para estar permanentemente em disputa, e Borges se vale precisamente dos efeitos tanto diretos quanto indiretos delas como esse gosto por anti-heróis e sensacionalismo de crimes para pôr em xeque nosso julgamento a respeito delas.

Por exemplo: há a história de Lazarus Morrell, um golpista que se vale de uma estratégia muito bem arquitetada para ludibriar escravos negros do sul dos Estados Unidos a entrarem no esquema e gerarem dividendos através de sua fuga. Morrell joga com as expectativas desses sujeitos em relação à liberdade, mas com uma frieza e uma ganância que nos deixa tão perplexos quanto sua refinada fraude, que, aliás, tem efeitos colaterais no mínimo curiosos.

Em outra história conhecemos Billy The Kid em sua identidade anterior, quando era conhecido como Bill Harrigan. É engraçado ver como as coisas mudam de figura quando Borges trata de um e de outro sujeito, somos toldados a formar uma imagem muito distinta quando nos deparamos com um e com o outro. Parece haver em nós uma “sede” por esse tipo de espetáculo.

Há também a história de uma viúva pirata numa espécie de vingança revestida de infâmia (ou seria o contrário? Difícil saber com certeza); a trajetória de um membro de gangue da Nova York do século XIX, que se equilibra numa corda bamba moral no mínimo pitoresca; a história de um servo a quem custa a aceitar seus compromissos apesar de suas atitudes; um pretenso profeta leproso que engana seus seguidores com truques habilidosos (ou seriam ardilosos?) e assim por diante.

Cada história parece guardar uma proposital dúvida, podemos enxergar os atos como condenáveis, mas, ao mesmo tempo, parece haver circunstâncias atenuantes em cada um deles – não suficiente, a meu ver, para absolvê-los, mas isso é questionável. Aliás, precisamente essas circunstâncias atenuantes que tanto nos desconcertam: aparecem como casos isolados ou são tão universais como a infâmia que parece acompanhá-las de braço dado?

A vontade que dá ao terminar de ler cada conto é a de voltar ao começo e usar de mais atenção para tentar desvendar o intrincado processo de narração de Borges para chegar a resultados que se mostrem mais satisfatórios. Parece haver uma certa “neutralidade” da parte do autor, que quer pôr o leitor a par dos fatos mas conduzi-lo o mínimo possível a um julgamento intrínseco. Assim, Borges deixa relativamente em aberto os cotejos morais, pois esses devem partir das próprias experiências e visões do leitor. Dá para se imaginar culpando e repensando o caso de cada uma das histórias.

Tendo consciência disso, Borges inclusive chamou suas histórias de “irresponsáveis”, justamente por voltarem-se a fatos sensacionalísticos que, pelo seu caráter pitoresco acabam atraindo toda sorte de opiniões, tanto favoráveis quanto condenatórias.

Percorre o livro todo uma questão bastante interessante (uma verdadeira brincadeira do autor): até que ponto podemos chamar algo de infame? Até que ponto a condenabilidade de um ato provém de sua natureza e em qual medida provém de sei juiz? A seriedade dessas perguntas certamente não casa bem com o tom descontraído (e com ar de troça) do autor, mas estão lá, devidamente insinuados. Essa é a questão: não estão ditas, estão insinuadas. E mais: estão imiscuídas nas liberdades ficcionais e anedóticas de História universal da infâmia, ou seja, são parte de um delicioso exercício de reconstituição tão histórica quanto ficcional.