Infelizmente, Harold Pinter não é muito traduzido no Brasil. A versão mais célebre, e creio que por razões justas, continua sendo a tradução de Millôr para a peça The Homecoming (Volta ao Lar), em que todo um debate foi instaurado sobre a linguagem chula que Millôr usou para verter o diálogo, por si só chulo, de Pinter.

No caso da peça The Caretaker, uma das poucas peças longas de Pinter, a tradução brasileira, não editada em livro, ostenta o infeliz título de “O Inoportuno”. Sua trama se passa num apartamento que mais parece um depósito. Envolve os irmãos Mick e Aston, e o mendigo Davies, o suposto inoportuno que, graças a um convite de Aston, passa a noite na casa e, depois, é convidado pelos dois irmãos a se tornar seu zelador (“O Zelador” seria uma melhor tradução para o título).

Como nas peças de Pinter, o ambiente familiar é um ambiente de estabilidade, um ambiente em que as personagens conseguem esconder seus segredos, seu lado nefasto com sucesso. Em sua primeira peça, The Room (O Quarto), Pinter trouxe à baila a construção arquetípica de seu universo dramatúrgico, e em The Caretaker a coisa “não muda muito”. Apesar do quarto ser uma bagunça, como eu disse (e como o leitor vai perceber, é sério, nas duas primeiras falas), nota-se que ainda assim ele é um ambiente acolhedor.

E é a partir desta trama de matiz real que, como disseram críticos outrora, Pinter conseguiu destilar toda uma gama de símbolos e segredos, forças inexploradas que regem suas personagens e as impelem à destruição mútua ou, no mínimo, à destruição do ambiente acolhedor de antigamente (o que, em Pinter, é a mesma coisa de destruição total).

Por exemplo: ao mesmo tempo que é comum que Pinter construa um ambiente de estabilidade, é comum, pois teatro é conflito, que ele introduza um fator de instabilidade na trama. Esse fator costuma ser associado com a porta, visto que é o exterior daquele ambiente que traz todos os males do mundo para aquele lugar tão bom onde eu posso esconder tudo o que há de ruim em mim sem que ninguém suspeite ou suspeite pouco.

Em The Room, por exemplo, é a entrada de um negro aparentemente chamado Sal. Em The Birthday Party (A Festa de Aniversário), peça em que isso se dá de forma mais acentuada, o constante temor de Stanley de que um mal iminente apareça pela porta e o machuque é também um exemplo claro.

Já em The Caretaker, podemos dizer que o mendigo Davies é o fator de destruição que entra no local. De fato, mas é de se notar que, como disse anteriormente, tanto Aston quanto Mick convidam Davies para ser zelador. Além do mais, Davies está sempre se referindo a um local chamado Sidcup, onde estão os papeis que comprovam que seu nome é Davies e não Jenkins (ele mentira), entre outros (suas qualificações profissionais, por exemplo), de modo que é como se ele não fosse tão exatamente o fator de destruição, mas, antes, apenas alguém que entrou naquela estabilidade acolhedora e que deseja impelir os irmãos para fora de cena. Ele repele os próprios moradores, o que se acentua mais ao final da peça, quando entendemos os verdadeiros propósitos de Mick e as lesões cerebrais de Aston. (Claro que quando digo “repelir” não digo literalmente, ainda que n’algumas passagens seja quase isso.)

A partir disso podemos entender o caráter caótico do apartamento ou algumas atitudes específicas, como a de estar sempre a consertar uma torradeira. Uma torradeira, um símbolo para a estabilidade caseira clássica (pense na família de classe média feliz e amorosa)? Ou o que dizer da estátua do Buddha que é quebrada no decorrer da trama? Ou da bagagem de Davies que, numa cena cômica, passa dezenas de vezes de mão em mão?

Como disse, tudo em Pinter está escondendo algo. O simples fato de Davies dormir na parte mais fria do quarto não é algo gratuito. Tudo o que Davies quer é um pouco de estabilidade, visto que é um mendigo. Mas, ao mesmo tempo, também luta por poder sair daquele ambiente e, por que não?, arranjar sua vida lá fora. Os constantes pedidos que faz a Aston de que ele lhe arranje umas botas pode ser posto em paralelo com a simbologia da bota que Beckett traça em Esperando Godot. Isto é: a bota é um convite à caminhada, a sair do agora. Se Estragon não consegue tirar o sapato ou se Davies não consegue arranjar um, parece ser claro que seus destinos são o de ficarem parados quando deveriam estar se movendo.

The Caretaker foi eleita uma das melhores peças no ano de seu lançamento. Pinter, graças a seu universo característico, como apontado, e sua inegável habilidade em retratar a vida como ela é, e a vida como deveríamos estar aptos a observá-la, Pinter, no decorrer de sua carreira, tornou-se uma das chaves fundamentais da dramaturgia do século XX.

Coisa, ademais, reconhecida no Nobel por ele recebido em 2005.

P.S.: Barbara Heliodora, em seu site, disponibiliza uma excelente conferência sobre o teatro de Pinter. Deixo-lhes aqui o link para a mesma.

Sobre o colaborador: Matheus de Souza Almeida, nascido em Goiânia (Goiás) a 12 de abril de 1992, é um estudante de Direito e leitor de poesia. De poesia. Afora os textos não ficcionais da faculdade, praticamente só lê poesia. Quase nada de prosa (a não ser a poética). Pode também ser encontrado no site Recanto das Letras, em que esporadicamente publica coisas esporádicas.