Leia a primeira e a segunda parte de Duas peças de Machado de Assis.

(III) A peça Tu, só tu, puro amor foi escrita em comemoração ao tricentenário de Camões, cujo monumento mais conhecido das comemorações é o da Estátua em sua homenagem posta na chama “Praça Luís de Camões”, em 1880. É baseada no primeiro verso da estância CXIX do Canto III de Os Lusíadas, do famosíssimo e imorredouro episódio de Inês de Castro, um dos pontos altos da poesia universal ao lado da estância CXX com o igualmente famoso e imortal verso “Estavas, linda Inês, posta em sossego”.

O argumento da peça é o dos amores palacianos entre Camões e D. Catarina, um episódio comum e em voga na época ao lado de outros igualmente lendários, como o do naufrágio e o da Gruta de Macau. Seu recorte romântico remete ao poema épico Camões, de Garrett, marco do romantismo em Portugal, ainda que a obra machadiana possua um nível de circunvolução mais baixo e menos acabado, como se Machado não tivesse dado azo ao seu gênio criativo e simplesmente legasse um monumento, perecível como a maioria da época, para a ocasião.

É que se a peça clássica anterior lograva de uma alegoria que terminava numa crítica social que lhe permite uma perenidade relativa, ainda que o assunto tenha sido esboçado e não aprofundado, esta segunda peça sobrevive apenas pelo igual esboço de uma personagem que consegue se sobressair em relação às outras pelo que poderia ter sido e em raras vezes pelo que é.

Esta figura é a do poeta máximo da língua portuguesa, Luís de Camões, quando, em sua juventude e começo de carreira poética, se enamorara de Dona Catarina de Ataíde, o que lhe deu desafetos que comunicaram acerca do fato ao El-rei de Portugal e, com tal, incorreu no exílio de Camões. Assim sendo, um enredo tipicamente lírico com uma possibilidade de um arroubo amoroso que condizia com a imagem romântica que Camões conseguiu cristalizar na mentalidade da época, em especial com o poema épico escrito por Garrett acima referido.

No entanto, quando Machado se propõe a criar um tema tão caro ao Romantismo, sem ser um romântico, está incorrendo num grave erro, dado o “sujeito sem alma” que Machado de Assis era. Assim, as personagens do drama sofrem de um mal irrepreensível que é o de não conseguirem se expressar com força e nem com plenitude, no que na maior parte dos casos são esboços mal feitos de caracteres que ao longo da história da arte possuíram exemplares mais notáveis, como o personagem de Caminha que, mais uma vez, mas ao menos de forma mais bem delineada que o Cupido da peça clássica anterior, lembra a personagem shakespeariana Iago por suas razões simplesmente não convencerem, como se a personagem fosse invejosa e malvada pura e simplesmente. Mas se Iago se insere numa das mais poderosas tragédias de toda a história, o Caminha de Machado está num meio amorfo e cercado de personagens fracas, sem o amparo de um Otelo para explodir em cólera e, como diz a definição de Gonçalves Dias, absolutamente perfeita, sem a “majestosidade das lavas de um vulcão”. Sua revelação de que ama D. Catarina é um momento interessante, no início, por deixar uma dúvida no ar que poderia muito bem ser deixada da forma como estava, não fosse talvez o fato da peça necessitar não de dúvidas, mas simplesmente de louvores para a ocasião de uma data comemorativa:

CAMINHA – Também não é porque ele vos ama, que eu o odeio; mas vós, senhora D. Catarina de Ataíde, vós o amais… eis o crime de Camões. Entendeis?

D. CATARINA, (depois de um instante de assombro.) – Não quero entender.

No que, logo após, Caminha reafirma seu amor, numa atitude que, como bem sabemos, é destoante da forma de proceder machadiana…

A própria personagem de D. Catarina é fria, é indecisa e não consegue sequer se manter em sua indecisão tampouco convencer. Ama Camões, mas ama os versos de Camões como Roxana ama os versos de Cyrano; suas mostras de amor são insinceras, não vêm de dentro e possuem um ar palaciano inegável e por isso mesmo, em se tratando de Machado de Assis, falso. Quando Camões se encontra com D. Catarina, percebemos nitidamente que a única coisa que consegue girar liricamente a engrenagem de uma cena fundamentalmente romântica e amorosa são as citações dos versos de Camões, os quais, caso o leitor já conheça, terão uma significância especial, assim como a trova sobre a Galinha no começo da peça e outras citações esparsas que preenchem o vazio que a peça ostenta de vez em vez e quando mais necessita (o que também não anula a habilidade de Machado ao selecionar tais trechos e colocá-los no lugar certo, é claro).

As outras personagens seguem a mesma linha, indo desde aquelas secundárias que simplesmente se apagam até aquelas outras que ganham uma simpatia do público por ajudarem um casal mais do que o próprio casal: é o caso de D. Francisca e D. Manuel, que tentam convencer a D. Antônio de não contar a El-rei sobre o romance entre Camões e D. Catarina, ainda que vãmente e com uma explicação para sua procedência no mínimo fraca (“[…] nós que somos felizes, temos o dever de consolar os desgraçados.”).

Desta plêiade de insucessos aparece, então, a personagem de Camões, uma criação genuína que consegue se fixar com um caráter mais bem delineado e de uma originalidade notável, se considerarmos uma figura tão usada durante a época… É que o Camões machadiano é um Camões de certa forma indiferente, que aparece demonstrando uma certa placidez de caráter e a certeza de seu destino engrandecedor no futuro, por vezes até mesmo com alguns indícios de uma faceirice que nós encontraremos em Capitu, como por exemplo em:

CAMÕES, (pegando-lhe no pulso.) – Por vida minha, calai-vos!

CAMINHA – Vede o lugar em que estais.

CAMÕES, solta-o. – Vejo; vejo também quem sois; só não vejo o que odiais em mim.

CAMINHA – Nada.

CAMÕES – Nada?

CAMINHA – Coisa nenhuma.

CAMÕES – Mentis pela gorja, senhor camareiro.

            {…}

CAMINHA – Nada menos. Queria eu dizer-vos que as paredes do paço nem são mudas, nem sempre são caladas.

CAMÕES – Não serão; mas eu as farei caladas.

CAMINHA – Pode ser. Essa dama era…?

CAMÕES – Não reparei bem.

Onde a referida dama era D. Catarina, logo após a cena onde os dois amantes conversam e trocam suas juras, mas de se notar também que nos aproveitamos para citar uma passagem que mostra a famosa impetuosidade camoniana que possui um toque pessoal machadiano pela facilidade com que solta Caminha quando este lhe faz lembrar o lugar em que se inseria: o castelo, a oportunidade, o lar da amada (…)?

Desta personagem, de um tracejado mais firme e com pontos dir-se-ia estratégicos, a ironia de duas de suas falas finais são o ponto alto da peça, surgidos quase que abiogeneticamente quando a peça mais precisava de algo para provar o mínimo de transcendência: e nós as citamos integralmente:

CAMÕES – Aí me vou eu, pois, caminho do desterro, e não sei se da miséria! Venceu então o Caminha? Talvez os versos dele fiquem assim melhores. Se nos vai dar uma nova Eneida, o Caminha? Pode ser, tudo pode ser… Desterrado da corte! Cá me ficam os melhores dias, e as mais fundas saudades. Crede, senhor D. Manuel, podeis crer que as mais fundas saudades cá me ficam.

            (….)

CAMÕES – Eu não choro, não; não choro… não quero… (Forcejando por ser alegre.) Vedes? até rio! Vou-me para bem longe. Considerando bem, Ásia é melhor; lá rematou a audácia lusitana o seu edifício, lá irei escutar o rumor dos passos do nosso Vasco. E este sonho, esta quimera, esta coisa que me flameja cá dentro, quem sabe se… Um grande sonho, senhor D. Manuel… Vede lá, ao longe, na imensidade desses mares, nunca dantes navegados, uma figura rútila, que se debruça dos balcões da aurora, coroada de palmas indianas? É a nossa glória, é a nossa glória que alonga os olhos, como a pedir o seu esposo ocidental. E nenhum lhe vai dar o ósculo que a fecunde; nenhum filho desta terra, nenhum que empunhe a tuba da imortalidade, para dizê-la aos quatro ventos do céu… Nenhum… (Vai amortecendo a voz.) Nenhum… (Pausa, fita D. Manuel, como se acordasse, e dá de ombros.) Uma grande quimera, senhor D. Manuel. Vamos ao nosso desterro.

São momentos realmente belos e emocionantes, quando Camões parte da ironia refinada e desesperada, dizendo que seria incumbência de Caminha escrever “uma nova Eneida”, e passando para um sofrimento e um combate interior que desaguariam no verso imortal que abre a epopeia camoniana bem como da visualização de uma quimera no futuro, provavelmente a de sua glória ou provavelmente a quimera de um Gigante Adamastor, com seu presságio lúcido da decadência de Portugal, ironicamente quando Portugal estava em seu auge: uma capacidade de visualizar o futuro deduzindo o presente que apenas os gênios, os vates possuem, e que Machado soube pincelar na medida certa e na hora certa, no provável único acerto da peça toda.

E, diante de um final comovente como este, onde Machado consegue legar uma imagem pouco trabalhada de uma personagem que poderia ser muito maior, a ocasião da peça, destes amores palacianos, se tornam ainda mais pungentes quando sabemos que Camões escreveu um soneto, após seu exílio, no túmulo de sua amada (“Os olhos onde o casto amor ardia”), paralelo ao mais belo soneto machadiano, escrito também no túmulo de sua amada, Carolina (“Querida, ao pé do leito derradeiro”). E esta quimera nem o próprio Machado havia visto.

Sobre o autor: Matheus “Mavericco”, nascido em 1992, Goiânia, gosta de literatura clássica em suas várias acepções, mas em especial daquela forma de arte que consiga contar uma boa história, fruto de uma boa reflexão, numa boa linguagem e com uma boa construção e coesão interna e externa: e que consiga, sendo assim, ser imorredoura até que o coração pare ou atrofie. Não é formado em nada e não está cursando nada; é um vestibulando e um concursando; é um apaixonado; é um leitor.