A turma do 2° período de Ciências Sociais da UFRJ foi surpreendida naquela quarta-feira: ao invés de estudar Georg Simmel, como programado na ementa do curso, onde mergulharíamos naquele conteúdo obscuro de sociação e da “vida do espírito”, nos deparamos com um texto projetado à lousa, de autoria de Edgar Allan Poe.

A professora, nova e ainda muito entusiasmada com suas aulas, logo explicou que a proposta do dia seria diferente: leríamos Poe coletivamente, cada um assumindo um parágrafo do conto O Homem da Multidão, de 1840.

O escritor brasileiro José Castello, numa de suas crônicas de Sábados Inquietos (que em breve terá resenha aqui no Posfácio), refere-se à leitura como um ato de “coragem solitária”, e segue dizendo que esse é um momento de introspecção, de mergulho em si e de perder-se de si. Inúmeros autores, anteriores e posteriores a Castello, repetem essa ideia.

Naquele dia, porém, tivemos a experiência da leitura coletiva, e ainda que o ato tenha impedido o mergulho individual, o ensimesmar-se em reflexões, filosofias e sentimentos, pudemos nos perder em meio aos outros, experimentando o prazer de ler pela voz, entonação e ritmo do outro. Dessa forma, naquele microuniverso da sala de aula, nos tornamos homens e mulheres da multidão.

O Homem da Multidão no Brasil faz parte do compêndio das Histórias Extraordinárias de Edgar Allan Poe, editado pela Companhia de Bolso. O conto não passa de uma dúzia de páginas, ainda assim, é denso em sua percepção da vida urbana, especialmente pela época de sua feitura e pela capacidade de apreensão do autor sobre os sinais da modernidade, hoje em dia tão latentes em nossas vidas.

Um homem sentado em um café de Londres, enquanto lê o jornal, observa os transeuntes que passam do outro lado da janela embaçada. Percebe tipos, repara as roupas, analisa feições, verifica atitudes e julga comportamentos. Perde-se entre a variedade humana e, sobretudo, percebe que há, como diria Simmel, um ocultamento das pessoas em relação às suas reais feições (internas e externas). A isso, Georg Simmel, o sociólogo-da-modernidade nascido na Alemanha, deu o nome de “segredo”. Já Poe, o americano pai da literatura gótica, transforma esse mistério em suspense e faz da cidade grande um labirinto de sombras, de vielas-esconderijos e de angústias suprimidas (“A horripilância de mistérios que não consentem ser revelados”).

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Georg Simmel (1858-1918)

O voyeur protagonista dessa história à certa altura se atenta a um senhor em meio à turba e parte em seu encalço. Passa dois dias atrás de um velho alienado que não percebe estar sendo seguido, nem tampouco parece estar indo a lugar algum e, por fim, quando os dois se encaram, experimentam o mais simbólico exemplo do caráter blasé também referido por Simmel: se veem, mas não se olham.

…detendo-se bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim: continuou a andar…

Pensei nos motivos que fizeram nossa professora levar Poe a uma sala de cientistas-sociais em formação, gente normalmente tão preocupada com discussões políticas, disputas partidárias, ideologias e análises sociais. Disse ela, justificando-se, que “a literatura não está dissociada da análise sociológica”.

De fato, a linguagem sempre brilhante de Poe nesse conto assemelha-se às apreensões sociológicas e não se diferencia muito, exceto pela fluidez, dos objetivos da escrita de Simmel. Assim, mergulhamos no melhor da Literatura do XIX para analisar a profissão do sociólogo, voyeur profissional que tenta apreender ao menos uma ínfima parte da realidade humana e suas interações. Sociólogos como homens da multidão por excelência.

A solidão é o que leva o protagonista de Poe a sair do café e acompanhar o velho. Exceto pela curiosidade, seus motivos não são explicados, provavelmente não existem, e é um ímpeto que o leva a abandonar o interior/pessoal/privado/protegido do café para o público/perigoso/desconhecido/impessoal da rua. Quando cruza com a multidão, surpreende-se ao encontrar tipos nunca antes imaginados, de jovens prostitutas a velhas que pesam na maquiagem para falsificar uma juventude já evadida (ocultação), passando pela degradação dos que empobreceram:

…outros ainda, trajando roupas que, em tempos passados, haviam sido elegantes e que, ainda agora, mantinham escrupulosamente escovadas…

O texto de Poe tem epíteto em francês (de Le Bruyêre), a primeira e última frase em alemão e a trama se passa em Londres, escrita em inglês, por um americano. Poe, portanto, vislumbra já àquela época não só a über-modernidade, como também a globalização: o mundo que se torna uma única metrópole, densa e infinita.

Além disso, o autor faz do clima ambiente símbolo do espírito da multidão e, conforme a noite cai e o sol se esconde, o protagonista se embrenha nas trevas da periferia da cidade, descobrindo assim as trevas humanas de uma realidade brutal. O movimento da leitura é interior-exterior: parte da solidão do protagonista que lê um jornal no café para “o coração da metrópole” nua e crua.

Nossa análise coletiva terminou com a visualização de algumas ilustrações, como as de Gustave Doré (uma delas abaixo), que retratam o homem como um animal jogado à sarjeta, tal qual o velho do conto de Poe, que se move pela cidade como um rato.

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Londres, século XIX

Nesse maravilhoso exercício literário-sociológico, o texto de Poe trouxe à lembrança o flâneur de Baudelaire, cujo O Pintor da Vida Moderna encontrei, por acaso, numa lindíssima nova edição da editora Autêntica.

O flâneur vadio retratado pelo poeta-maldito, bem como o homem da multidão – fechado como um livro que não se deixa ler (“es lasst sich nicht lesen”) – de Poe e as ilustrações dos apreendedores da multidão (como os sociólogos e os ilustradores) se misturaram, assim, naquela aula de Sociologia I 1, refletindo, nas obras de arte e nas diferenças dos alunos daquela sala a grande e confusa miscigenação dos tipos que constituem a sociedade.

  1. Texto dedicado aos alunos de Sociologia I da UFRJ e à Tatiana, a professora-socióloga-literata