Existem muitos motivos para curtir o projeto Amores Expressos, e um deles, talvez não o mais nobre, está no aspecto “experimento antropológico com escritores”. Suponha que você seja enviado a um país estrangeiro, com a missão de escrever uma história: que atitude assumiria? Do forasteiro? Do nativo? Do emigrante adaptado? Dentre todos os livros do projeto, Ithaca Road, de Paulo Scott, parece ser aquele que se inclinou mais fortemente para um ponto de vista local. Seus temas não deixam de ser universais, mas estão imersos nos hábitos e no cenário de Sydney.

O que Scott nos passa, ao longo do romance, é a imagem dessa cidade à beira-mar, a riqueza e a desigualdade própria da Austrália, a menina loura que anda com a maori, a ambição econômica de pessoas que acreditam no sucesso dos seus pequenos negócios, etc. Vale a pena repetir a impressão da protagonista da sua perspectiva do terceiro andar do edifício número seis da Ithaca Road:

Levanta-se, abre a janela do quarto, contempla a ausência de circulação de carros e pedestres lá fora, tendo bem claro que esse lá fora significa (apenas em menor extensão) esta cidade e país, este lugar de resistência, de geografia insular, onde as flores nativas não têm perfume, onde a dedicação europeia saturou paraísos litorâneos, um posto avançado da Terra do Nunca, empresa do império, ódio contra as consuetudinárias inglesas, corridas do ouro, febre do ouro, a tolerância acuada em relação aos asiáticos, […] adolescentes encorpadas com seus timbres graves e seu caminhar impávido movimentando minissais curtíssimas e saltos quinze nas baladas de sábado, arrestos, inundações, a primeira a ser fundada, a mais cosmopolita, o lugar do Opera House e da famosa praia de Bondi, em cuja areia boa parte dos jovens bem-nascidos ao redor do mundo (jovens que conseguem tempo e dinheiro para manter frequencia nas praias e o esbanjamento dos esportes radicais) sonha em enterrar os pés e aproveitar.

Narelle, a protagonista, tenta se readequar ao ambiente australiano depois de alguns anos vivendo na Irlanda, mas também circulando entre Londres, Nova Iorque e outras cidades mais, em busca de estampas para estilistas das grandes grifes – essa ocupação que soa estranha e cosmopolita para ouvidos brasileiros. A moça, neozelandesa de origem, descendente maori mestiça, volta a Sydney a pedido do irmão, Bernard, que diz precisar de ajuda na condução de seu restaurante luxuoso e supostamente deficitário.

A partir desse ponto, a história acompanhará a vida de Narelle pelos próximos cinco dias. Esse desenvolvimento, ao mesmo tempo que linear, se expande muito mais em densidade, à medida que novos elementos são introduzidos. Sabemos, aos poucos, sobre Jörg, o namorado, jornalista investigativo, sempre idealista, mas muitas vezes distante em sua dedicação ao trabalho; ou sobre Trixie, a amiga mais jovem, insatisfeita com suas conquistas, receosa com suas escolhas, que embora pretenda estar incondicionalmente disponível a Narelle, não alcança uma verdadeira comunicação entre elas, etc.

Que o leitor tenha essa experiência de descobrir aos poucos um personagem não é algo incomum na literatura. Mais interessante em Ithaca Road é que a própria Narelle parece ir encontrando a si mesma nessas experiências. Ao retornar a Sydney, ao vivenciar novamente antigas situações, ao encontrar amigos que há muito não via, ela precisa lidar com as próprias transformações. Nesse sentido Narelle seria não tanto como a Penélope que espera, mas como o Ulisses que retorna à ilha vinte anos depois e se vê um outro homem.

Mas existe no livro também algo de romance noir. Logo fica claro que os problemas financeiros do restaurante são mais graves, e Narelle passa a ser jogada de um lado a outro, num ping-pong de interesses entre o síndico da falência do restaurante, representantes sindicais dos funcionários, etc. Dentro dessa trama, parece cada vez mais crucial que ela consiga entrar em contato com o irmão. Por vezes o livro mergulha nessa investigação, cujo foco passa a ser a obsessão pelo paradeiro de Bernard, mas por vezes Narelle se recusa a assumir o papel de detetive, como se flutuasse num nível em que essas questões tornam-se insignificantes.

O drama pessoal de Narelle é mais complexo e difícil de definir. A principal chave para entendê-lo talvez esteja na sua relação com Anna, uma garota autista que encontra um dia por acaso, em Bondi Beach. O segredo pode  o fato de que Anna não pertence àquele grupo de antigos amigos, e por isso pode oferecer uma experiência realmente nova a Narelle, ou pode ser seu distanciamento social, que a faz uma pessoa menos egoísta, mas o fato é que alguma identificação surge entre elas. Enquanto a situação em relação ao restaurante se complica, as duas garotas procuram cada vez mais a companhia uma da outra.

Quanto ao real sentido do envolvimento entre as duas, caberá a cada leitor encontrar sua própria explicação. O estilo de Scott é de nunca fazer explicações. Na verdade, toda a descrição é tão concentrada nas ações e nos seus resultados, em vez das intenções, que nem mesmo Narelle parece compreender as questões que a movem.

Ithaca Road não é evidentemente uma história sobre os problemas culturais brasileiros, sobre os índios, sobre os políticos e os militantes desiludidos, embora de alguma forma esses temas se repitam no fundo; o livro é quase o anverso de Habitante Irreal, o elogiado romance anterior do autor. Mas um traço comum entre esses dois romances, e que merece destaque na produção do escritor, é o modo como seus personagens vão se desenvolvendo, não apenas por escolhas internas, mas em reação aos seus destinos. Scott representa muito bem as transformações de longo prazo – o militante idealista que se torna um fracassado, o nerd que se torna figurinha vip –, bem como as pequenas rupturas, incontornáveis, que precipitam essas mudanças.

Por outro lado, certas cenas de Ithaca Road soam às vezes excessivamente triviais, e chegam a perder demais em credibilidade. Quando Narelle comparece ao lançamento de uma jovem escritora, por exemplo, boa parte do texto se ocupa da transcrição da tal obra fictícia, “Desenhos Lunares”, bem como de uma representação bastante negativa da sua autora. É difícil entender a relevância disso dentro do romance de Scott, senão como um pastiche da ficção de gênero menos qualificada, porém mais lucrativa ou mais bem sucedida entre os jovens. São momentos que não fazem jus à capacidade do escritor.

No apanhado geral, embora falte algo para que cenas como essa sejam mais convincentes, o romance funciona bem no arco total. Ithaca Road mostra na sua complexidade como um conjunto de fatores se concentram, num curto período de tempo, para alterar a vida e a personalidade de uma pessoa. Esse é o processo que afeta Narelle nesses dias em Sydney, cujo resultado, obviamente, não se completa aí, e que só podemos vislumbrar, ao final do livro.