Adoro a pergunta-título. Ela vale para quase tudo na vida: um pensamento, um sonho, uma amizade, um encontro, um livro. De vez em quando, ela surge com o simples “estar em algum lugar”: Eu estou nessa cama (pelo menos é a minha, ufa), mas não lembro como cheguei nela… Ah, amnésia pós-anestesia: tá explicado. (Espero não ter usado o celular dopado novamente!)

Enfim: com exceção dos casos de coma alcoólico ou anestésico, não deixa de ser interessante essa tentativa de identificar como é que se foi parar em determinado local ou situação. 1 Sem querer me aprofundar no pensamento de Weber, 2 foi ele que me alertou a respeito de como as causalidades são múltiplas e de como é tolo achar que se sabe o que causou o quê. 3 Contudo, insisto em gostar dessa busca: há o acaso; há atos intencionais; e há um monte de coisinhas pequenas ao redor das quais não fazemos ideia. 4

Por que raios eu resolvi ler Ioga para quem não está nem aí, de Geoff Dyer, então? (Já aviso que as razões que me vêm à mente não têm uma ordem científica.)

* Porque o autor foi confirmado para a FLIP 2013.

* Porque eu gostaria de contribuir para a cobertura do Posfácio da Festa e seria interessante saber um pouco mais sobre esse escritor antes da mesa dele.

* Porque um autor de que gosto muito se lamentou por não poder estar em Paraty no dia em que Dyer falará um pouco sobre ensaios.

* Porque o título e a capa me chamaram a atenção: o primeiro, por ser despojado (tem algo mais despojado do que “não estar nem aí”?); a última, por suas cores vivas, que me lembraram do texto de quarta capa do romance Cocktail, de Heywood Gould. 5.

* Porque um dos blurbs da quarta capa (escrito por William Shawcross, do Independent on Sunday) dizia: “Totalmente inclassificável. Se Hunter S. Thompson, Roland Barthes, Paul Theroux e Sylvia Plath saíssem de férias juntos no mesmo corpo, talvez pudessem aparecer com uma coisa assim.” – uma imagem deveras interessante, que me pareceu mais honesta do que a de Kafka e Lewis Carroll tendo um filho.

Enfim, creio que já tenha dado pra ter uma ideia de alguns dos motivos, casuais ou intencionais, que me levaram a pegar o livro. Só que esta não é exatamente uma resenha sobre “Como é que eu vim parar aqui com este livro?”. É mais um texto sobre “Como é que eu vim parar aqui com este amigo?”.

* * *

Em minha classificação literária particular, há uma subcategoria especial de escritores, ainda mais seleta que a categoria “escritores favoritos, que amo muito e indico pra todo mundo”: a dos “escritores amigos, que me levam para passear”. Ela é uma demarcação muito subjetiva, especialmente levando-se em consideração que nenhum dos três cujos nomes me vêm à mente (Italo Calvino, Georges Perec e Julio Cortàzar) poderia realmente ter me levado para passear.

Apuro estético é essencial na subcategoria, claro. No entanto, creio que o principal elemento definidor dela é a sensação de que estou conversando com o autor pelas ruas de uma cidade calma e bonita – Paraty, digamos. Ele não precisa necessariamente inventar uma história para mim: 6 ele pode, sei lá, discorrer sobre alguns aspectos do conto enquanto se queixa de que ninguém o conhece em Cuba; ou fazer uma defesa apaixonada a respeito de como se considera idiota em comparação à sua esposa e seus amigos cult. 7 Enfim, as coisas podem estar misturadas.

Sei que nem todas as caminhadas levam à amizade: a companhia pode ter o passo largo demais ou um sotaque estranho ou qualquer outro jenesequá causador de incompatibilidades. Mas, às vezes, você sente o clique: putz, acho que estou gostando pacas dessa pessoa. É basicamente isso o que ocorreu com os três autores citados. E também com o escritor por trás de Ioga para quem não está nem aí. Nunca te vi, sempre te amei: é essa a vibe.

O jeitão despojado – o “não estar nem aí” – define muita coisa. Ainda que o “não estar nem aí” remeta a palavras como “desleixo” e “descaso”, deixo claro que não é exatamente a isso que faço referência. Quero falar de humor, leveza, exatidão e rapidez, qualidades importantes, três delas presentes nas Seis propostas para o próximo milênio, de Calvino. O “não estar nem aí”, para mim, é uma das coisas mais complicadas de ser feitas literariamente: tem de parecer fácil ao leitor comum, ainda que quem tente fazer igual saiba que não o é.

Ensaios não precisam, necessariamente, ser bem humorados, leves, exatos e rápidos. Lembro-me de quando li Cidade aberta, de Teju Cole (que é um romance, mas que me pareceu querer ser lido como um livro de ensaios): o livro é muito bom, mas também é, muitas vezes, chato, pesado, vago e lento. Acompanhar Dyer em suas viagens – seja em Nova Orleans, seja no Camboja – é, antes de tudo, algo leve e divertido. Diálogos como o que transcrevo a seguir podem surgir a qualquer momento – esse, especificamente, ocorre logo após o narrador e um amigo temerem brevemente por suas vidas, ao serem abordados por dois homens que pareciam zangados, mas, no final, estavam de bem com a vida.

“É por essas e outras que ando com isto”, disse ele, abrindo o porta-luvas e enfiando a mão lá dentro. Passou-me uma arma. Eu nunca tinha segurado uma arma antes. Era pequena, pesada, preta e de aparência perigosa. Entreguei-a de volta para Donnelly, que tornou a fechá-la no porta-luvas.
“O problema é que só me restam duas balas. Quer dizer, o que vou fazer se três caras resolverem se meter comigo?”
Eu não soube o que responder. Eu era inglês e, como tal, completamente estranho aos costumes das armas de fogo.
“Duas balas”, disse Donnelly, sacudindo a cabeça.
“Talvez você devesse comprar mais”, disse eu.
“Isso mesmo. Preciso comprar mais balas.”
“Duas balas…”
“Merda. Duas balas não são nada.”
“De que serve uma arma só com duas balas?”, perguntei. Eu estava pegando o jeito de falar sobre armas, e na verdade até começava a gostar.
“Qualquer arma precisa de seis balas”, disse Donnelly.
“Isso. O revólver leva seis balas no tambor.”
“E numa dessas estou quatro balas abaixo da conta.”
“Funcionando só com trinta e três por centro do seu potencial.”
“Sei, menos quatro é igual a dois.”
“Um déficit de quatro.”
“Um sujeito só com duas balas no revólver é um fresco de merda.”
“Eu não quis dizer isso”, emendei. “Por que achei que você podia ficar ofendido.”
“Mesmo sem você dizer, eu sabia que era isso que você estava pensando.”
“Se eu fosse você, iria amanhã mesmo na loja de balas. Assim que acordasse.”
“E sabe o que eu vou fazer quando chegar lá?”
“Comprar quatro balas.”
“E pode ser que compre até seis.”
“Boa idéia.”
“Aí eu ficava com duas de reserva”
“Duas de reserva, exatamente.”

Eu sei que já juntei Dyer a uma galerinha de três, mas queria citar outros três autores, dessa vez brasileiros, que escrevem daquele jeito que parece-fácil-mas-que-deve-dar-um-trabalhão-de-tão-leve-e-bem-humorado-e-bem-escrito: Antonio Prata, Luís Fernando Veríssimo e Vanessa Barbara. Se você curte as crônicas, ensaios e colunas desses três, é provável que também goste de pegar uma carona no livro do Dyer.

Finalizo o texto com duas obsessões pessoais: “fotos inspiradas de livros com capas bonitas” e “trechos que provavelmente inspiraram o trabalho do(a) capista”. A foto é que ilustra este post. O trecho é este a seguir:

Eu tinha chegado ao Santuário uma semana antes da festa mensal da lua cheia em Haad Rin. Haad Rin pode ter sido um lugar legal não muito tempo atrás, mas agora estava sufocada por sua própria popularidade, cheia de jovens lindos que adoravam raves e assistiam filmes a todo o volume do TV durante o fia enquanto esperavam a noite fluorescente.

  1. Ok, dou o braço a torcer: não é lá muito produtivo fazer uma busca dessas no campo dos sonhos. É tipo voltar a dormir a fim de continuar o sonho de onde parou: tem quem consiga fazer isso, mas não é normal.
  2. Lembro-me pouco do que li dele durante o curso de Direito e realmente não tenho vontade alguma de procurar as anotações que fiz durante as aulas de sociologia jurídica. Ou qualquer outra anotação feita durante a graduação, verdade seja dita.
  3. O que explica a minha birra com filmes como Efeito borboleta. Ashton Kutcher, a tua mãe poderia ter virado fumante e desenvolver um câncer por qualquer motivo. O mundo não gira em torno do teu personagem. Deal with it!
  4. Isto é água.
  5. Nunca o li, mas virou filme estrelado por Tom Cruise. Já o emprestei diversas vezes em bibliotecas públicas e adorava reler a descrição do drink Zumbi, que é a maior criação do bartender Brian, o protagonista. As cores dele (do drink, não do bartender), ainda que eu nunca o tenha visto, parecem fantásticas. O texto a que me refiro termina com as seguintes frases “Não o sacuda, ou as cores se misturarão. Não o beba, ou a ilusão do arco-íris terminará.”
  6. Ainda que eu seja fervoroso entusiasta de livros de ficção.
  7. Falo de Cortázar. O texto sobre aspectos do conto se encontra no livro Valise de cronópio, logo após um texto enorme sobre Poe; o último, por sua vez, se chama “Você tem que ser realmente idiota para” e pertence ao livro Volta ao dia em 80 mundos. O Pips já falou sobre ambos os livros no Especial Julio Cortázar.