Recebi Pulphead, traduzido por Chico Mattoso e Daniel Pellizzari (coincidência, ou não, ambos autores da Coleção Amores Expressos), em casa por indicação da Diana e da Clara que trabalham na Companhia das Letras. Não sei ao certo se Luiz Schwarcz treina todos seus funcionários a criarem uma espécie de influência sobre as pessoas ou a estudarem em minúcias o perfil de cada leitor. Também não precisaram realizar esforços homéricos, a quarta capa – e as diversas resenhas que li – avisavam que o autor daquele livro de ensaios era comparado a Tom Wolfe e David Foster Wallace.

Àquela altura, John Jeremiah Sullivan era um desconhecido para mim e ele ainda não estava confirmado a vir às ruas de Paraty praticar caminhada com obstáculos no centro histórico. Todavia, ao confirmarem sua presença, atropelei algumas teclas no meu MacBook e agendei uma entrevista com o ensaísta na primeira data disponível, por e-mail.

Ao chegar em Paraty conheci André Araújo, um dos “hóspedes” da Casa Posfácio, que já colaborou com o site indiretamente com Bruno Mattos e que se considera um fanático pelos ensaios do Sullivan, se empolgou em me ajudar nessa empreitada mais do que bem vinda – e o gravador era dele, de qualquer forma. Mal sabia eu que suas perguntas seriam tão pertinentes quanto as minhas e, provavelmente, aquele encontro, em um jardim na sexta-feira ensolarada e quente de Paraty, seria um aperitivo (quase couvert) da tão esperada mesa “A arte do ensaio”.

Chegamos a Casa da Companhia das Letras, na Rua do Comércio de Paraty. Eu estava um pouco nervoso, pois no primeiro ensaio de Pulphead Sullivan transcreve fielmente sotaques e sabe diferenciá-los na escrita.

 

“Fiquei com medo de começar essa entrevista. Meu sotaque é muito puxado e isso fica evidente quando falo em inglês.”, confessei.

 

Sullivan deu uma leve risada, enxugou o suor da fronte antes de elogiar meu inglês, tragou seu cigarro enrolado à mão, soltando a fumaça de maneira peculiar:

 

“Eu presto muita atenção a sotaques, provavelmente por ser do sul dos EUA, apesar de não me considerar um escritor sulista, pois cresci em indiana. Uma coisa que o sul faz com você é sensibilizá-lo para os diferentes modos de falar. Eu lembro quando tinha 13 anos e minha família se mudou do Kentucky para Ohio, lembro de rirem de mim pelo meu sotaque, imitando o jeito que eu falava.”

 

Nessa hora me identifiquei e soltei outra risada, mas ele continuou:

 

“E de alguma forma o meu ouvido ligou. Comecei a prestar atenção ao modo como as pessoas falavam, e que esse modo muitas vezes refletia questões de classe.

Pessoas te julgam, mas há um perigo aí. Nós temos a ideia de dialeto como algo das classes menos favorecidas e isso pode facilmente parecer preconceito quando você o faz demais [na sua escrita]”

 

Com o livro recém-lançado no Brasil ainda fresco na minha cabeça, lembrei imediatamente de “Sobre este Rock”, ensaio de John Jeremiah sobre o Woodstock do “white rock”, ou porcamente traduzido por mim como rock cristão. 1

 

“Eu queria saber se este tipo de perigo se aplica quando você fala de religião ou de pessoas reais…”, levantei a bola sem esperar uma grande resposta. Articulado, Sullivan respondeu que “Nós estamos sempre presos numa espécie de falso pensamento. Até mesmo nós, que sabemos de ciência é apenas uma metáfora que funciona para nós. Funciona melhor para nós mesmos e eu acho que para a humanidade em geral, mas ainda é uma metáfora. Você está sempre numa posição de fraqueza e incerteza. Por exemplo, numa pequena cidade do sul dos Estados Unidos, se são os cristãos que estão lutando pelos direitos civis e não os intelectuais, então, quem está certo nessa situação?”

 

Sullivan deu pausa dramática para dar outro trago no cigarro e finalizou, no melhor estilo fatality retórico:

 

“É a pessoa que tem uma filosofia ou um pensamento mais atraente ou os que estão realmente olhando para o outro com um espírito amoroso?”

 

Um pouco atônito pela clareza com que respondeu e me deixando sem palavras, André assumiu o comando da entrevista perguntando se esse tipo de olhar para o outro tinha algo a ver com empatia e se isso era importante para seu trabalho de observador.

 

“Eu não havia pensado em empatia no meu trabalho até o momento em que o livro saiu, mas as pessoas começaram a usar a palavra insistentemente em resenhas e artigos.”

 

(os entrevistadores deram risadas discretas e o entrevistado percebeu.)

 

“Então isso tornou-se uma questão para mim. Eu pensava se a empatia é algo necessariamente bom ou se há pessoas com quem você não deveria ser empático. É na verdade um julgamento moral, que pode soar como um artifício, algo quase cínico, pragmático.

(…) Então é algo que serve muito mais ao escritor do que aos personagens. Mas a empatia realmente reflete o modo como me relaciono com o mundo quando estou no meu melhor, quando estou menos FUCKED UP. Eu nos vejo todos como perdidos e confusos em algum nível. É arrogante achar que que você está de fora dessa confusão. Não apenas arrogante, como também incorreto e idiota. E quando você aceita que você está dentro dessa confusão, é mais fácil entender o que as pessoas querem dizer quando falam empatia. Do modo como compreendo, é olhar para uma pessoa e dizer: “Eu posso imaginar totalmente a narrativa da minha própria vida acabando onde você está agora, mas circunstâncias ou o destino ou nossas escolhas foram o que nos tornaram diferentes”. Isso tem a ver com a questão do livre-arbítrio. Se você não acredita nele, é quase impossível ser empático.”

 

André comentou antes da entrevista que um dos melhores ensaios que leu, depois de “Too much information” – uma mistura de resenha e ensaio sobre The Pale King de David Foster Wallace -, é “Quero minha América de volta” (American grotesque), presente em Pulphead. Enquanto John Jeremiah falava sobre empatia, André lembrou deste ensaio em que o escritor fingiu fazer parte de uma família vínculada ao Tea Party. 2

 

“Há um poeta americano, chamado Fred Seidel, que escreve sobre como a política entra em nossa vida pessoal, como ela se manifesta na nossa personalidade. Eu queria fazer algo parecido com esse ensaio, a política dentro de uma família. Eu sei que algumas pessoas ficaram indignadas pelo fato de eu ter fingido fazer parte do Tea Party. Mas o debate então havia se tornado tão idiota que achei que a única maneira de falar sobre isso, de penetrar mais profundamente, era deixar o leitor incerto sobre qual posição eu estava tomando. Se eu falasse de saída, poderia-se achar que eu falaria o que já se sabe, e então perderia o leitor.”

 

Guilherme Magalhães, jornalista do Rascunho de Curitiba que está na Casa Posfácio esse ano, diz que eu não consigo ficar mais do que dez minutos em uma conversa sobre literatura sem citar David Foster Wallace. 3 Ainda que eu quisesse evitar ao extremo chegar a pergunta mais básica de qualquer entrevista, sobre influências e comparações, era inevitável não falar de DFW com a iminente tradução de Infinite Jest no Brasil. Para evitar a babação de ovo em cima do cara da bandana, falei sobre Jonathan Franzen e o fato de Liberdade ser um romance tradicional em pleno século XXI em oposto ao seu melhor amigo experimental.

 

“É como ciência, como Física. As pessoas estão falando sobre isso desde Newton, e se você quer entrar na conversa, deve saber do que todos estão falando. Essas pessoas estão tentando resolver os mesmos problemas desde sempre, e você está apenas tentando introduzir uma variação sobre isso, mas não está inventando nada.”

 

– Você se vê em alguma tradição? – interrompeu André, fazendo o íntimo.

 

“Eu espero entrar numa tradição. Isso seria o caso se o que estou fazendo é de alguma forma bom; o que só saberei depois de morto. Mas certamente, no que estou lendo, há uma tradição, indo até o Novo Jornalismo e um jornalismo literário ainda mais antigo, como DeFoe. Coisas que aconteceram no início do século XVIII, quando faziam essa não-ficção com técnicas de ficção e vice-versa. E também a tradição do que hoje em dia se chama de Creative Non-fiction, que são livros que tem uma agenda de não-ficção, que falam sobre coisas que são verdades incontestáveis; mas também uma agenda de ficção, que tem a ver com contar histórias ou até mesmo drama. Quando vejo esses dois gêneros, Novo Jornalismo e Creative Non-fiction, que estão aí por tantos anos e tem tantos bons escritores esquecidos, sinto que é aí que quero deixar minha marca.”

 

Não sei se ele deixará sua marca na literatura e na história dos ensaios – espero que sim -, mas já deixou-a na folha de rosto da minha edição de Pulphead.

  1. Pee Wee, um dos personagens desse ensaio, morreu antes do livro ser publicado. Pulphead é dedicado a ele também.
  2. Partido de extrema de direita americano, muito forte nos estados do Sul, ao qual pertence Sarah Palin
  3. Já o citei lá em cima como vocês perceberam