Há livros que não se lê pela história que contam – ao menos, não apenas pela história que contam –, mas pela própria experiência de lê-los. Muitas vezes, essa afirmação define a diferença entre um clássico e um livro “bom-e-só”. Afinal, você pode saber tudo que acontece em obras como Dom Quixote ou Anna Kariênina – ainda que resumi-los não seja tarefa das mais fáceis –, mas não pode falar que os conhece realmente sem ter tido o gostinho de ler a prosa de Cervantes Saavedra e Tolstói.
Há algo de clássico em On the road, de Jack Kerouac. Escrevo dessa forma – “há algo de clássico” – pois claramente há: os que concordam que é, sim, um clássico e que não se tem como falar dos beats sem citar esta, a mais famosa das obras deles; os que não veem lá muita qualidade nessa obra como marco definidor da Geração Beat; e os que se perguntam por que ainda se lê as criações dos jovens que fizeram parte desse movimento (datilógrafos, não escritores, segundo Truman Capote). Além disso, há também os que acham o livro tão atual que chamá-lo de “clássico” tiraria sua “contemporaneidade” – e é melhor não discutir com eles. O fato é que este é mais um desses títulos de que se ouve falar muito e que, mesmo assim, não perdem a graça de serem lidos.
Presumo que mais e mais pessoas lerão On the road depois de terem assistido à adaptação de Walter Salles. Difícil resistir ao apelo estético da capa da nova edição: mesmo que os atores do filme apareçam nela (o que ajuda a tornar a capa, daqui a alguns anos, em algo datado), o céu azul contrastando com o deserto enche os olhos. Considerei a adaptação um bom filme. Por que, então, ir atrás do livro?
Eu não saberia responder essa questão. Isso porque não li exatamente a obra em que o filme foi baseado (esta tem como subtítulo, no Brasil, a expressão “Pé na estrada”), mas a edição alcunhada como “O manuscrito original” – que já foi resenhada anteriormente pela Anica. E ambas as razões que cito para justificar a leitura do romance se encontram exclusivamente nesta edição.
Uma delas é a sinceridade, essa palavra famigerada. Enquanto na edição “Pé na estrada” nós travamos contato com Sal Paradise, Dean Moriarty e Carlo Marx, na “O manuscrito original” temos acesso direto aos nomes que foram “mascarados” – respectivamente, Jack Kerouac, Neal Cassady e Allen Ginsberg. A associação entre nomes não é das mais difíceis – além de haver inúmeros sites dedicados a fazê-lo, isso não é particularmente difícil se você já teve contato com as biografias desses sujeitos –, mas dá gosto de ler o livro como se estivéssemos lendo um diário pessoal. Dá uma sensação de, digamos, intimidade com o escritor – um escritor que pertencia a um movimento que queria aproximar vida e literatura e potencializar ao máximo certas formas de criação literária, como o desregramento dos sentidos.
A outra razão – para mim, o principal trunfo do livro – é a ausência de divisão de parágrafos e partes. A versão “editada” tem parágrafos certinhos, é dividida em cinco partes e evita repetições desnecessárias; o manuscrito original, não (ainda que apresente, bondosamente, uma pontuação que dizem inexistir no gigante rolo de papel em que Kerouac teria datilografado sem parar a primeira versão do livro). Obriga o leitor a criar um novo fôlego, um novo método de leitura. Não tem como dizer “ah, vou ler só mais esse parágrafo e vou dormir”. Para não se perder, faz-se necessário saber direitinho identificar onde termina um “causo” e começa o outro, por exemplo. Ou então ler tudo de uma só vez – e haja cafeína no sangue para enfrentar tantas páginas sem parar.
Ainda que isso pareça a princípio apenas uma dificuldade para a leitura, tente pensar por esse lado. Ler um livro assim é como encontrar aquele amigo de que não temos notícias há muito tempo; ele estava viajando e voltou cheio de histórias pra contar. Você sabe que ele chegou já meio tarde e precisa descansar da viagem (ou que em algum momento vocês terão fome e precisarão parar um pouco a conversa), mas durante horas ininterruptas é como se nenhum dos dois tivesse um corpo físico com o que se preocupar. Só querem continuar conversando: você, ouvindo uma história se misturar com a outra; ele, aos poucos, descobrindo o que aconteceu com você durante esse tempo todo sem se verem.
É isso: ler On the road – O Manuscrito Original é como ter uma longa e boa conversa com um amigo.
Que bacana esse seu texto! Há um tempo que tenho vontade de ler esse livro. Acho que vou furar a fila de leituras com ele – e aproveitar pra ler essa edição do manuscrito original, que, felizmente, há um exemplar na biblioteca daqui 😉
Brigado, Gabriel.
Tem na biblioteca, então? Opa, melhor ainda, né? Se você gostar, tá no lucro e pode, depois, providenciar um exemplar pra si, se tiver interesse. Se não rolar identificação com o livro, é só devolver e nunca mais vê-lo. ^^ Amo bibliotecas.
Tentei ler o manuscrito há um mês atrás e parei logo no começo. Senti as dificuldades que vc mencionou, mas adorei tanto o seu texto que vou tentar lê-lo de novo e encarar a leitura sob o prisma sugerido.
Isso. Faça isso, Luciana. Se resolver (ou não), passe aqui pra contar como foi. ^^
O Gosto da torta de maça com o sorvete de creme fica na boca, coisa que nem no filme aparece.
É verdade! ^^