Pierre-Auguste Renoir (1841-1919) foi considerado um dos pintores fundadores do impressionismo. Jean Renoir (1894-1979) foi um dos cineastas-mestres do realismo francês. Pai e filho, ambos artistas, mas por veredas distintas, estão retratados no longa Renoir, de Gilles Bourdos, que enfoca a relação deles com a modelo/atriz/cantora Andrée Heuschling.

Pierre-Auguste (um incrível Michel Bouquet) é um septuagenário decrépito, isolado em sua extensa propriedade em Côte D’Azur, Riviera francesa. Tendo há pouco perdido sua mulher, Aline, Renoir tornou-se um velho duro, incapaz de maiores aproximações e até mesmo estafado em produzir, mas aos poucos é alquebrado pela suavidade da “pele de pêssego” e das curvas do corpo nu de sua nova modelo, Andrée (Christa Theret), e assim encontra inspiração para continuar produzindo (ou seja, para continuar vivendo), em tardes ensolaradas eróticas por natureza e infinitamente belas.

Para contar a biografia dos Renoir destacando, sobretudo, o pai, era apenas lógica a construção de uma estética visual que privilegiasse a iluminação. Sempre achei que biografias de pintores devem, por respeito, buscar a estética de suas obras – Ed Harris fez isso em Pollock (2000), Julie Taymor fez em Frida (2002) e, infelizmente, James Ivory não fez isso em Os amores de Picasso (1996), para ficarmos apenas em alguns exemplos. Aqui, Gilles e sua equipe (especialmente o cinematógrafo Mark Lee Ping Bin) alcançam o ideal com muita propriedade, fazendo o sol da Riviera penetrar na tela de forma tão magnífica quanto Pierre-Auguste impregnava a luz em seus quadros, resultando em cenas que bem poderiam ser em três dimensões para que os raios pudessem tocar a face da plateia.

Jean Renoir nesse filme é vivido por Vincent Rottiers. Soldado da Primeira Guerra, o ponto de virada de sua vida é conhecer Andrée, originalmente uma atriz, inspiração para movê-lo ao Cinema. Felizmente para nós, cinéfilos, essa decisão resultou em obras primas como Madame Bovary (1933), A grande ilusão (1937) e A marselhesa (1938), de um diretor que foi reconhecido, entre outras coisas, com um Oscar honorário em 1975.

A relação entre pai e filho, como poderíamos esperar, é conturbada, e o filme reserva longos segundos de silêncio que são, à mesma medida, de contemplação artística e pura dor: dor da solidão, dor física, dor da arte.

Tendo ressalvas em relação à performance de Christa Theret, que faz Andrée, desde o desanimador O homem que ri (2012), tenho que admitir, contudo, que aqui não apenas sua semelhança física com a Andrée original, como sua delicadeza e beleza angelical, que destoam em repentes agressivos e impulsos marginais, são os pontos altos do filme.

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Andrée Heuschling (a.k.a Chaterine Hessling) e Christa Theret

Engenhoso, em várias cena o diretor faz os raios solares repousarem no dorso nu da protagonista, enquanto o resto do cenário é preenchido pelas mais diversas cores, construindo com delicada sensualidade emulações das telas de Renoir, como As grandes banhistas (1887) e Blonde with a rose (1917, abaixo).

Pierre-Auguste_Renoir_-_Blonde_à_la_rose

Sofrendo pesadelos noturnos e inexprimíveis dores nas articulações, causadas por uma artrite extrema que lhe desfigurou a mão, Renoir está em dor e espírito nas feições de Michel Bouquet. Seu denso e estiloso bigode que lhe esconde a boca faz com que sua voz estrondosa pareça sair de lugar nenhum, como que uma voz onipresente, quase divina, sempre declamando falas belíssimas.

À época em que começou a posar para o pintor, Andrée tinha apenas 17 anos e era uma pobre órfã francesa com sonhos grandes. Atingiu, à certa maneira, alguns deles, pois foi imortalizada nas obras de um artista incomparável e posteriormente tornou-se esposa de Jean, estrelando seus primeiros filmes sob o codinome de Catherine Hessling.

Em entrevista a Blouin ArtInfo, o diretor de Renoir descreve essa mulher como “a ponte entre a pintura e o Cinema. Ela foi a última modelo do pai e a primeira atriz do filho”. Não era, porém, uma atriz proeminente, e após o divórcio (em 1937) caiu no esquecimento, até ser retomada por esse belo filme de Gilles, um filme-pintura que retrata a vida de três artistas, conseguindo o feito de respeitar a arte e a personalidade de cada um deles.