Dia 4: Homem vs. Mulher vs. Natureza

Eu não sei exatamente o quanto eu devo revelar sobre Força Maior (Ruben Östlund, 2014), porque a trama toda se desenrola a partir de um único incidente, cujas consequências reverberam até o final. Tentarei ser o mais vago possível, resumindo os acontecimentos aos seus elementos mais fundamentais.

Uma tradicional família sueca (pai, mãe e dois filhos) está passando as férias em uma estação de esqui nos alpes franceses. Tudo vai bem até um almoço em que uma avalanche se aproxima ominosamente do restaurante ao ar livre, gerando pânico em todos os presentes. Ninguém se fere, mas atitudes tomadas durante o evento começam a abalar a dinâmica familiar, criando uma linha divisória entre o casal, algo que até então não existia. Isso obviamente afeta também os filhos, e eventualmente até um casal de amigos que sequer estava presente durante a avalanche (quem assiste a Game of Thrones vai reconhecer Kristofer Hivju a.k.a. Tormund Giantsbane) vira dano colateral.

É um filme sobre o papel dos gêneros e suas responsabilidades individuais em relações tradicionais, e sobre como a imagem que você tem de uma pessoa (e de si mesmo) pode mudar radicalmente a partir de um único acontecimento. Esses temas são ilustrados com destreza em uma dramédia fascinante que alterna humor e seriedade em um ritmo insano, de forma que você nunca sabe o que esperar de uma determinada cena. Östlund é especialmente hábil em gerar momentos hilários através de um único corte em que os personagens são reconfigurados no plano.

O único ponto negativo é um epílogo completamente desnecessário, que serve basicamente para reiterar um ponto que já havia sido feito em uma cena climática momentos antes. Isso me incomodou um pouco, mas imagino que não vá ser um problema para a maioria das pessoas. Leviatã continua sendo o melhor filme que vi na Mostra até agora, mas esse é um segundo colocado bem próximo.

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Com roteiro escrito por Nick Hornby, adaptado de um livro autobiográfico, Livre (Jean-Marc Vallée, 2014) conta a história de Cheryl Strayed, uma mulher que decidiu fazer uma caminhada de 1.770 quilômetros pela Pacific Crest Trail como forma de lidar com traumas recentes. O filme começa in media res durante a caminhada, de forma que pessoas que (como eu) não leram o livro não fazem ideia da motivação que a levou a embarcar em uma empreitada para a qual claramente não está preparada.

As explicações logo começam a surgir na forma de flashbacks, todavia, e é aí que os problemas aparecem, porque os acontecimentos anteriores simplesmente não são muito interessantes. Eu sei que tudo isso (ou melhor, uma versão disso) aconteceu de verdade, mas o fato é que os flashbacks constituiriam um drama bastante clichê, não fosse a cronologia fragmentada em que são apresentados, contendo drogas-abuso-divórcio-câncer-adultério, não necessariamente nessa ordem.

A sequência não cronológica ajuda a digerir os flashbacks; muitas vezes eles misturam vários períodos em um espaço de poucos segundos, o que simula efetivamente a forma como memórias funcionam. Mas toda vez que eles se estendiam em cenas propriamente ditas eu ficava extremamente impaciente, torcendo para o filme voltar para o presente, porque a verdade é que foi bastante divertido ver Reese Witherspoon (bem-vinda de volta, Reese!) aprendendo a sobreviver no deserto e encontrando personagens variados e interessantes no caminho.

Enfim, decente.

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