O que permite identificar um brasileiro em detrimento de um francês? O que faz um dinamarquês diferente de um mongol? O que define um egípcio? Foram perguntas como essas que motivaram uma grupo bastante numeroso de pesquisadores a buscarem respostas na história do nacionalismo e do desenvolvimento das nações. Essas perguntas, que podem parecer “óbvias” num primeiro momento, se forem encaradas por bastante tempo, podem levar a conclusões surpreendentes e nada confortáveis.

A despeito do que diversas abordagens têm mostrado – grosso modo, que não existem critérios objetivos que permitam explicar o que torna um francês um francês e um espanhol um espanhol –, Benedict Anderson se mostrou surpreso pela realidade inegável do nacionalismo. A existência e a força do nacionalismo são impossíveis de ser ignoradas por qualquer estudioso da história da humanidade de pelo menos três séculos para cá, de modo que, antes de um fenômeno histórico que deva ser julgado através de uma oposição entre falsidade e autenticidade, ele deve ser abordado por meio de suas expressões, isto é, pela sua factualidade desconcertante, e cuja admissão é forçosa.

O exercício mental proposto por Hobsbawm no início do livro Nações e nacionalismo desde 1780 (Paz e Terra, 1990) ilustra muito bem a quintessencial presença do nacionalismo no traçado da história e da geografia modernas. O historiador inglês propõe-nos imaginar que um alienígena viesse à Terra depois de um cataclismo que teria destruído a humanidade e que, diante das ruínas, ele quisesse compreender o passado daquela espécie para reconstruir a sucessão de eventos que ocasionou sua extinção. O fato que Hobsbawm destaca muito bem é que sem levar em consideração a nação e o nacionalismo, o alienígena certamente não conseguiria entender a história da humanidade na contemporaneidade.

Benedict Anderson se apercebeu do mesmo fato de outra maneira. Independente de admitir-se a falsidade da nação, milhões de pessoas morreram e/ou estavam dispostas a morrer em nome dela, o que põe uma questão crucial para qualquer pesquisador das ciências humanas: como é possível compreender um tal comportamento? Olhando para os monumentos, túmulos e cenotáfios erigidos à memória dos soldados que tombaram em defesa dessa ou daquela nação, Anderson se deu conta de que o mesmo não poderia ocorrer com um marxista tombado em ação ou com um liberal martirizado pelos seus atos. Isso se dava, entre outros motivos, porque a natureza dos laços que unem a nação – e que a mantém amarrada – é distinta de convicções ideológicas ou visões de mundo pura e simplesmente. Se trata de um laço imaginado, uma ligação que foi cozida no fogo da história e na intempérie dos tempos, daí o título da obra: as nações são, antes de qualquer coisa, “comunidades imaginadas”.

As motivações que fizeram com que Comunidades imaginadas (cuja primeira tradução data de 1989) fosse levado a cabo envolvem um prolífico e extenso diálogo que Anderson entabulou com outras publicações acerca do nacionalismo, cujos autores são, para citar alguns, Hobsbawm, Gellner, Kedourie e Renan. O estopim das indagações de Anderson, conforme o próprio autor explicita, fora o livro de Tom Nairn, The break-up of Britain (A dissolução da Grã-Bretanha, sem tradução ainda), no qual um dos pontos nevrálgicos era justamente o questionamento sobre a – dúbia – posição marxista em relação ao debate acerca do nacionalismo.

No sentido de avançar nas discussões e contribuir para uma possível resposta à pergunta de Nairn, Anderson realizou uma pesquisa de fôlego que faz afirmações ousadas acerca do tema, e que, pela sua larga base empírica e apurada abordagem teórica, já é tida como um clássico no estudo do nacionalismo.

Para levar a cabo sua tarefa, Anderson busca na singularidade do momento histórico em que o nacionalismo nasceu rastros que permitam interpretá-lo sob novo viés e à luz de novas evidências. Embora haja infinitos fios de historicidade a serem levantados e enovelados numa explicação que contemple minimamente a substância daquele momento, Anderson elenca alguns – e sustenta empiricamente seu elencar – que permitem compreender o que havia de específico naquele período que possibilitou a formação do nacionalismo com determinadas feições e com tanta força como ele passou a ter em um espaço de tempo relativamente curto.

Um longo processo de secularização vinha se sedimentando no pensamento europeu, especialmente com a quebra da hegemonia do latim, a Reforma Protestante e os avanços e investidas dos filósofos apóstolos das ideias iluministas. Sendo a postura da Igreja Católica posta em xeque, seus pressupostos de interpretação do mundo são submetidos a uma sabatina racional, de modo que a comunidade imaginada que estava ancorada na religião sofra um abalo e abra espaço para que outras consciências e coletividades surjam no cenário social. Aliado a isso há também os eventos ligados à Revolução Francesa e a derrubada dos reinos dinásticos e dos bastiões do Antigo Regime. A conjunção desses e de outros fatores, ocasionou um repensar sobre os laços de fraternidade que havia entre os homens, fazendo com que, minimamente, alguns dos caminhos para o nacionalismo fossem abertos.

A simplificação grosseira da argumentação de Anderson que aqui se dá, intenta sublinhar os aspectos mais destacados com o propósito de dar uma amostra da articulação epistemológica do autor. Estando a origem do nacionalismo fincada num terreno de grandes transformações, foi o próprio nacionalismo a “imaginação” sobre um ponto de orientação, a expressão das convulsões de seu tempo: diante da instabilidade que as mudanças traziam, “imaginar” comunidades sob novos parâmetros e com novos critérios se tornou uma reação possível.

Isso foi possível graças, entre outros elementos, ao desenvolvimento do capitalismo editorial ou tipográfico, que potencializou o despertar e construir de uma consciência em que havia um elo “imaginado” a unir determinados sujeitos sob uma nação em detrimento de outras nações ou comunidades. O jornal e o romance, nesse ínterim, foram essenciais para a constatação de que havia uma multidão anônima de outros sujeitos que pertenciam à mesma comunidade que o leitor, dando cada vez mais sustentação à ideia de uma comunidade imaginada, de uma nação.

Para amarrar todas essas constatações e dar-lhes solidez, Anderson busca a interlocução com as obras de Eric Auerbach, Walter Benjamim e Victor Turner. Na intersecção das abordagens desses três intelectuais, Anderson conduz uma interpretação tão interessante quanto ousada: o nacionalismo, embora tenha desdobramentos e caráter políticos, culturais, ideológicos e econômicos, é, concomitantemente, uma forma de consciência. E uma forma de consciência que surgiu dos conflitos históricos que a tornaram possível, embora não a tenham feito necessária.

A partir destes pressupostos é que Anderson constrói sua análise, buscando, a partir dessa discussão inicial, dissecar os vários “tipos” de nacionalismo, como aqueles que surgiram na Europa nos séculos XVIII e XIX, de forte tônica popular; ou os ocorridos na América espanhola, com um caráter burguês acentuado pela tensão colônia-metrópole, e buscando o apaziguamento dos clamores populares; ou ainda o “nacionalismo oficial”, aquele que buscava preservar bastiões dinásticos europeus através de concessões oficialescas e maquiavelismos. Cada um deles é alvo de uma sabatina articulada que não mede esforços para dar sustentabilidade empírica e teórica às suas proposições.

Comunidades imaginadas é um livro que quer ir além do que é enxergado à primeira vista, é um livro que apesar de sua audácia interpretativa não é insolente com relação à tradição que critica, respeitando-a conscientemente como base na qual se apoia, apesar de suas ressalvas.

Patrick Geary, historiador que investigou o nacionalismo e que escreveu o livro O mito das nações – A invenção do nacionalismo (Conrad, 2005), disse, aludindo à fabricação histórica promovida pelas nações, que “o passado, como sempre foi dito, é um país estrangeiro e nunca nos encontraremos lá”. O livro de Anderson é consciente desse fato, mas é como se dissesse: a despeito de ser o passado um encontro imaginado ou um desencontro real, o nacionalismo goza de força e solidez suficientes para arrastar milhões para guerras, estádios, eventos cívicos ou tragédias xenofóbicas. A factualidade da imaginação está entre aquilo que o nacionalismo tem de mais desconcertante, e é, certamente, razão forte o suficiente para justificar o tour de force que é o livro de Anderson.