São poucos os diretores que entraram no universo do Cinema pela porta da frente, Bruno Barreto foi um deles: filho do casal de produtores Lucy e Luis Carlos Barreto, aos 21 anos Bruno dirigiu Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), recorde de bilheteria nacional até Tropa de Elite 2 (2010). Desde então, teve a oportunidade de adaptar Nelson Rodrigues, em O Beijo no Asfalto (1981), novamente Jorge Amado, em Gabriela, Cravo e Canela (1983), unindo Marcello Mastroianni e Sônia Braga, e assim ir moldando sua identidade, marcada pelo cosmopolitismo que mistura EUA e Brasil, os dois países em que divide sua vida.

Atingiu o ápice com uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro com O Que é Isso, Companheiro? (1997). Agora, em seu 19° trabalho, com um empurrãozinho de sua mãe, aceitou contar a história do turbulento amor entre a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares e a poeta americana Elizabeth Bishop, em Flores Raras, que estreou no Brasil em 16 de agosto.

Via Skype, na tarde de sábado (17), tivemos uma longa e agradável conversa 1 sobre o filme, com direito a muitas tergiversações:

 

 Eu me sinto muito como Elizabeth Bishop

 

Como foi o processo de mudança do título ao longo da produção, passando por A Arte de Perder e Você Nunca Disse Eu Te Amo, até a decisão final por Flores Raras no Brasil e Reaching For The Moon internacionalmente?

O filme não é baseado no livro da Carmen L. Oliveira (Flores Raras e Banalíssimas), ele é inspirado no livro, porque nós lemos vários livros e, mais importante que eles foram as entrevistas. Nós entrevistamos pessoas que conviveram com a Lota e com a Bishop, entre elas o Rafael de Almeida Magalhães, para quem o filme foi dedicado, que foi o vice-governador do Lacerda e ao mesmo tempo era secretário de obras (da construção do Parque do Flamengo).

O Flores Raras eu não queria porque eu queria deixar muito claro que meu filme é sobre a perda. O que norteou o viés pra eu contar essa história foi o poema Uma Arte, da Elizabeth Bishop, que é o poema mais famoso dela – não vou dizer que é o melhor, porque quase tudo o que ela escreveu é muito bom. Por isso eu gostava do título A Arte de Perder, achava instigante, acho que até poderia funcionar como autoajuda, o que faria o filme bem comercial (risos), mas eu fui voto vencido, não consegui convencer ninguém, nem distribuidor, nem produtor, nem nada, então, é claro que eu não queria todo mundo contra. Eu poderia ter batido o pé, mas eu ficaria prejudicado na hora de lançar e um filme que não é visto por ninguém, que é mal lançado, meio que morre na praia, né?

A versão original desse filme é em inglês, porque ele é falado em sua maioria em inglês, então eu fui por Reaching For The Moon, que eu acho que é um título que não compromete o filme, ao contrário, acho ele talvez até melhor que A Arte de Perder, porque é mais ambíguo, é menos óbvio e se explica pela canção linda cantada pela Ella Fitzgerald no final do filme.

Você Nunca Disse Eu Te Amo foi o título que menos durou, porque eu não gostava dele, embora seja uma fala do filme, mas eu achava que transformava o filme meio que numa comédia romântica. E ficou Flores Raras no Brasil, não por causa do livro, mas porque elas eram flores raras realmente.

Como foi trabalhar com suas duas atrizes principais, Glória Pires como Lota e a australiana Miranda Otto como a poeta americana Elizabeth Bishop?

São dois processos completamente diferentes, elas são duas grandes atrizes, mas de formação completamente diferentes. A formação da Glória é autodidata e da Miranda é bem acadêmica – no bom sentido da palavra acadêmica –, é uma atriz com um background de teatro muito grande, então é uma atriz muito equipada. Então foi muito interessante, foi muito estimulante, as duas são extremamente inteligentes.

No Brasil existe essa coisa do preparador de elenco, que eu acho um absurdo porque, poxa, então como uma pessoa pode ser chamada de diretor se não sabe dirigir os atores? Existe essa coisa que diretor de Cinema não tem que saber dirigir ator, isso é um absurdo. Eu só usei preparação de elenco em um filme que eu fiz, que foi o [Última Parada] 174, porque eu trabalhei com atores amadores, e acabei mandando a Fátima Toledo embora, não porque ela seja ruim, mas porque ela disse que eu só poderia passar uma vez por semana no ensaio.

Flores Raras é o meu 19° filme, a coisa que mais me dá prazer é dirigir ator e por isso o trabalho com elas foi muito fascinante. As duas fizeram muita pesquisa, muita, muita pesquisa, então isso é bom, claro, é ótimo, mas ao mesmo tempo atrapalha um pouco, e eu tive que repetir algumas vezes, até mais para a Glória, do que para a Miranda, de que o filme não era um documentário. Elas estavam muito intoxicadas pela quantidade de informação que tinham. Tanto as duas quanto a Tracy Middendorf (que interpreta Mary), que também é uma ótima atriz, tinham uma quantidade enorme de perguntas, que só melhoravam o trabalho, mas eu ficava exausto. Eu chegava em casa e dizia pra Lisa [Graham, sua esposa]: Meu próximo filme vai ser só com homens (risos) – foi um pequeno trauma.

O filme tem feito uma intensa temporada internacional, como ele tem sido recebido lá fora?

O filme tem sido muito bem recebido fora do Brasil. Ele também está sendo muito bem recebido no Brasil, mas acho que está sendo melhor recebido fora. Não é de surpreender, não é um filme brasileiro, eu acho que é um filme como a Elizabeth Bishop: um filme do mundo. Eu me sinto muito como a Elizabeth Bishop, eu me sinto um estrangeiro, eu me sinto um peixe fora d’água em qualquer lugar, e eu não estou dizendo que isso é melhor ou pior, é só a minha condição, e nesse aspecto eu me identifico muito com a Elizabeth Bishop.

A recepção do filme nos EUA, ganhou prêmio e teve críticas ótimas – por enquanto só nos jornais especializados, porque não foi lançado ainda lá. Ganhou prêmio de público no Festival Frameline, em São Francisco, que é o maior festival gay do mundo; ganhou prêmio de público no Outfest, o festival gay de Los Angeles; em Berlim foi o segundo filme mais votado pelo público. Então o filme está realmente tendo uma carreira muito bonita e vai ser lançado no fim de outubro em Nova York e Los Angeles.

Todo mundo que viu lá (fora do país) fica muito entusiasmado. É difícil comparar, as pessoas daqui gostam muito do filme também, mas eu acho que elas se relacionam de uma maneira mais profunda com o filme fora do Brasil, sobretudo no mundo anglo-saxão. O filme é falado em inglês, então, talvez por isso, por causa da língua.

O senhor, já indicado ao Oscar, visa as premiações internacionais? Qual sua opinião sobre elas?

(Não me chama de senhor, não, porque eu ainda não me sinto um senhor. Sobretudo quando somos dois cinéfilos (risos). Acho que o Cinema acaba com as idades, o Cinema é ecumênico nesse sentido).

Acho que existe uma diferença básica entre festivais e o Oscar: por que o Oscar é tão cobiçado? Não é porque ele é o mais famoso, (mas) porque ele é o reconhecimento que lhe é dado pelas pessoas que fazem o que você faz. Nos festivais, são críticos, curadores, cinéfilos, são pessoas que pensam, que escrevem, refletem sobre o que você faz, e isso é complemente diferente, tanto que muitos filmes que chegam ao Oscar não passam em festivais ou não ganham prêmios em festivais.

 

 

Só pra citar dois recentes: Guerra ao Terror (2010), só ouvimos falar de Guerra ao Terror mesmo depois que ganhou o Oscar, ele não ganhou a Palma de Ouro em Cannes ou prêmio em Veneza ou em nenhuma festival do mundo, certo?  O Discurso do Rei (2011) ganhou vários Oscars e não passou em nenhum festival. Então essa é a diferença.

 

O Dona Flor [e seus dois maridos] foi indicado ao Globo de Ouro, não foi um filme que passou em festival – foi até recusado no Festival de Cannes. O que é isso, Companheiro? passou no Festival de Berlim, não ganhou nenhum prêmio, mas foi indicado, estava entre os cinco finalistas. Essa é a diferença básica.

Não precisa ser seu amigo, mas aquele que ganha a vida fazendo exatamente o que você faz, esse assiste seu filme e a opinião dele é totalmente diferente daquele que ganha a vida refletindo e escrevendo – não estou dizendo que é melhor ou pior, é diferente.

Você tem dito que Flores Raras não é um filme centrado na temática da homossexualidade, mesmo assim, o tema se destaca, talvez por estar na pauta dos dias atuais. De alguma forma isso influenciou na construção de como a relação entre Lota e Bishop seria mostrada?

Desde o início houve uma postura muito clara da minha parte de que o filme não era sobre a relação homossexual, era sobre a perda, então podia ser uma história sobre um homem e uma mulher, entre dois homens, não importa. O tema central do filme é a perda, então eu não queria de maneira nenhuma que o espectador ficasse confuso, eu não queria em momento nenhum mandar mixed signals, sinais trocados, misturados…

Toda cena no roteiro, umas de maneira mais direta, outras mais oblíquas, vão falar sempre do tema da perda. Você pode reparar que toda cena do filme fala sobre esse tema. Na minha opinião isso é o que faz um bom roteiro, é quando esse fio condutor é muito forte, muito definido. Ao mesmo tempo eu não queria ser pudico, evitar o assunto da relação homossexual, isso eu não queria, porque é uma relação homossexual. Mais do que isso, é exatamente encontrar esse equilíbrio entre focar no tema central do filme e ao mesmo tempo não renegar ou evitar que havia um elemento extraordinário, fora do comum na história.

Era importante deixar claro que a atração entre elas era muito forte, isso era muito importante, porque essa é a liga entre duas pessoas tão diferentes… E é exatamente porque elas são diferentes é que a atração deve ser tão forte. Então isso é o que as une e ao mesmo tempo o fator complicador da relação. Isso eu acho que era um grande terreno de uma história de amor, que é o que eu queria fazer. Eu queria fazer um grande filme de amor, porque acho que existe uma grande carência de filmes de amor. Qual foi o grande filme de amor que você viu recentemente?

Isso norteou a postura em relação a como tratar a coisa da relação (homossexual), mas eu queria deixar muito claro também que não era um fato determinante pra história, é um fator coadjuvante.

Não foi permitida a gravação na casa de Samambaia (projetada por Lota e Sergio Bernardes), tendo que substituí-la por uma casa projetada por Oscar Niemeyer. Como foi isso?

Eu nem tinha decidido filmar na casa, eu queria visitar a casa, pra conhecer pelo menos, porque eu só conhecia por fotos. A casa está lá, existe, mas a dona não deixava a gente nem entrar na casa. Mas pelas fotos que vi acho que a locação que a gente escolheu é muito melhor, muito mais cinematográfica, e ao mesmo tempo tem todos os elementos essenciais da casa verdadeira, ou seja, uma construção modernista na selva, uma casa ousada. A do filme é mais espetacular? É, e pra mim Cinema é espetáculo, entende? Na medida certa, é claro, não a qualquer custo.

Eu não estava preocupado com a essência por causa da realidade. Eu poderia mudar tudo, mas é que esse era um aspecto da realidade que eu queria manter no filme, essa ousadia das linhas modernistas, que são muito clean, limpas, na coisa barroca da serra do mar, da floresta tropical.

Mas se tivesse a oportunidade de ter filmado em Samambaia, você teria?

Tenho quase certeza que não, porque eu só vi fotos, eu nunca entrei, mas eu acho que não, acho que essa que a gente achou é superior. Outro detalhe muito importante é que essa locação que a gente escolheu tinha a casa antiga, tinha as duas casas numa locação só, o que me facilitava imensamente. Eu podia construir isso cinematograficamente, filmando em locações diferentes, mas isso ia me complicar muito logisticamente e eu não ia poder nunca, numa cena só, ter a casa antiga e a casa nova. Agora o estúdio dela (da Bishop), onde ela escreve, aquilo é tudo construído, aquilo não existia na locação.

 

Eu me sinto um estrangeiro, eu me sinto um peixe fora d’água em qualquer lugar

 

http://www.youtube.com/watch?v=dJIQWEKDT74

  1. Agradecimentos a @juliaosthoff , Clara e Lisa Graham (na imagem em destaque, com Bruno), que possibilitaram essa conversa