Poucos estudiosos conseguem se distanciar tanto da realidade contemporânea para explicá-la quanto Eric Hobsbawm. Enquanto continuamos tão imersos na realidade para a enxergarmos em perspectiva, o historiador inglês era capaz de se pôr à distância e direcionar seu olhar para questões que não se delineiam para nós por estarmos muito perto delas.

Essa capacidade de Hobsbawm, contudo, não é um dom inato, mas o fruto de uma vida de reflexões, vivências, leituras e observações da realidade, calcadas numa convicção ideológica inquebrantável. Sua atuação intelectual sempre foi alimentada por uma seriedade e uma paixão ao ofício tão notórias quanto sua perspicácia.

Na coletânea de ensaios Globalização, democracia e terrorismo, Hobsbawm mais uma vez demonstra sua capacidade de observar o mundo contemporâneo – a realidade imediatamente vivida – de um prisma diferente, um prisma construído pela longa caminhada que o historiador empreendeu desde o século XVIII até os nossos dias. Como um conhecedor desse longo processo histórico, Hobsbawm pôde rastrear com propriedade as raízes da contemporaneidade e enxergar os nossos dias como parte desse processo.

À luz do desenvolvimento histórico de um século tão conturbado quanto foi o século XX, Hobsbawm delineia três problemas que foram recorrentes nas palestras, discursos e conferências que ofereceu – e que formam o livro –: a globalização, a democracia e o terrorismo. Como se trata de textos curtos, feitos para serem proferidos, não há uma sistematização extensa sobre os temas, mas sim uma abordagem concisa – frequentemente estruturada através de tópicos delineados ao longo do texto – que mostra a segurança de Hobsbawm em ser sintético, atendo-se aos aspectos e elementos mais essenciais dos problemas dos quais fala.

A situação do mundo contemporâneo encontra-se intrinsecamente ligada ao advento da globalização e da criação de mercados livres globais. Esse processo acaba por flexibilizar as fronteiras nacionais e esbarra – menos do que seria desejável, no entanto – com a autoridade e a soberania dos Estados territoriais, num conflito que Hobsbawm tem por central para explicar o mundo contemporâneo: o fato de que a globalização não conseguiu globalizar a política.

Como a globalização está calcada num laissez-faire ultrarradical, a atuação de governos é tido por ela, muitas vezes, como algo prejudicial na medida em que estabelece, por exemplo, taxações sobre produtos e impostos sobre negociações, limitando, por conseguinte, os lucros e a circulação de mercadorias e força de trabalho. Num cenário global tal, em que o mercado tem uma liberdade sem precedentes, a oferta de consumo ganha um novo fôlego perante a atuação do governo em, por exemplo, oferecer serviços e garantias.

Isso leva a um dos aspectos mais importantes da situação contemporânea: a perda de legitimidade e poder dos Estados territoriais. A mobilidade de pessoas e a atuação poderosa dos interesses neoliberais coloca o Estado em xeque constante, pois restringe sua possibilidade de atuação e, por conseguinte, sua capacidade de garantir aquilo que um Estado, até então, poderia garantir. É gerada, assim, uma intensa insatisfação com relação ao Estado e uma crescente utilização e apoio ao mercado globalizado com suas ofertas estroboscópicas de produtos e opções.

A política se esvazia do sentido que teve por todo o longo tempo desde que o Estado moderno havia sido criado, o que flexibiliza certas garantias até então minimamente asseguradas, fazendo as pessoas desacreditarem do governo enquanto entidade e instituição garantidora de elementos essenciais da vida social cotidiana.

A abordagem de Hobsbawm acerca da democracia, por sua vez, se baseia nesse argumento basilar. Tendo o Estado perdido a legitimidade da qual gozara até aquele momento histórico – por conta da globalização e da ascensão do consumo privado sobre a vida pública –, sua capacidade de fomentar a democracia encontra-se enfraquecida. Aliás, não é o governo que cria ou sustenta a democracia por si só, mas ele tem papel importante na manutenção funcional de instrumentos e mecanismos democráticos que vão desde o processo eleitoral até a garantia de direitos básicos como moradia, educação e saúde.

Nesse sentido, há que se pesar também o papel da grande imprensa em tornar toda essa situação evidente. Como cada passo do governo é focalizado pela mídia em manchetes e mais manchetes, a capacidade que um governo tem de “se mover” se encontra fatalmente amarrada com a capacidade que a mídia tem de mostrá-los “se movendo”, ainda mais considerando o fato de que o governo depende de eleição para estar no poder. A reflexão que Hobsbawm constrói sobre a democracia é impressionantemente ousada: ele atreveu-se a pesar e ponderar os problemas da democracia sem ficar cantando loas a eleições ou à tão recorrentemente aludida “vontade do povo”. Desempenha papel importante nessa reflexão o questionamento sobre o que é povo numa era de cultura, propaganda e política de massas. Um questionamento desconfortável mas nem por isso menos necessário e, creio, urgente.

Na intersecção do enfraquecimento do Estado, da disseminação da democracia como justificativa moral de operações militares e do papel da imprensa na realidade contemporânea, encontramos o terrorismo. Hobsbawm é categórico em dizer que a publicidade que os atos terroristas ganham é exatamente o que eles querem: quebrar a moral dos cidadãos. Notando que o procedimento padrão para lidar com ataques terroristas foi, durante bastante tempo, não lhes dar publicidade, Hobsbawm critica duramente o redimensionamento do terrorismo que a grande imprensa vem levando a cabo nos dias de hoje.

Embora note que o terrorismo seja um problema que exige tratamento especial e que encontra-se num caudal de transformações históricas que levaram o mundo a uma barbarização crescente, Hobsbawm afirma com lucidez que uma histeria sobre o terrorismo está longe de ser uma boa saída. A histeria serve, sim, a propósitos legitimadores por parte de superpotências como os Estados Unidos, que buscam levar a cabo o que o historiador chama de “imperialismo dos direitos humanos”, isto é, uma justificativa supostamente altruística para legitimar intervenções armadas.

Ainda que Globalização, democracia e terrorismo não seja uma abordagem sistemática desses três temas, acredito que a vasta experiência e erudição de Hobsbawm consegue fazer dele um livro de referência sobre esses temas. Por conta da capacidade que o historiador marxista tem de abordar problemas dentro de uma conjuntura ampla, que leva em consideração dinâmicas complexas e inúmeras “variáveis históricas”, o livro em questão consegue escapar ao comum erro da reificação, que é a atitude potencialmente anacrônica e errônea de isolar o problema para sua investigação.

Compreendendo globalização, a democracia e o terrorismo como processos intrinsecamente ligados ao mundo que os cerca em todas as suas dinâmicas, relações sociais e atitudes humanas, Hobsbawm consegue dialogar com os rumos desses três problemas nesse mesmo “estado de coisas”. A urdidura argumentativa da historiografia de Hobsbawm, combinada com sua perspicácia em níveis micro e macro, e ponderada por sua erudição e experiência nos dá uma ideia de quanto perdemos com seu falecimento no ano passado. Perdemos, sem dúvida, um dos grandes estudiosos e um dos mais argutos observadores da contemporaneidade.

Segue a lista dos ensaios reunidos na coletânea:

1. Guerra e paz no século XX
2. Guerra, paz e hegemonia no início do século XXI
3. Por que a hegemonia dos Estados Unidos difere da do Império Britânico
4. Sobre o fim dos impérios
5. As nações e o nacionalismo no novo século
6. As perspectivas da democracia
7. A disseminação da democracia
8. O terror
9. A ordem pública em uma era de violência
10. O império se expande cada vez mais