Como parte da edição 2013 da Copa de Literatura Brasileira, o Posfácio tem participado das partidas através dos comentários da mesa-redonda, de modo que foi demandado que lêssemos todos os livros que estão na disputa. Posso dizer que vem sendo uma experiência muito interessante se debruçar sobre livros, histórias, discussões, reflexões e ideias que ainda estão quentes por terem recém saído do forno. Sabemos que aquilo tudo foi gestado em um período relativamente recente, e que, por essa circunscrição histórica minimamente comum, os livros trazem, por menor que seja, um conjunto de angústias, preocupações e problemas que também os leitores estão experimentando.

Foi, em parte, com esse espírito que resolvi estender minhas leituras em literatura brasileira contemporânea, e, nesse ínterim, encarar o romance Barreira, do contista – estreante no romance – Amílcar Bettega.

Barreira é um livro que faz parte da já célebre coleção Amores Expressos, projeto literário através do qual diferentes escritores brasileiros são enviados a grandes cidades do mundo para permaneceram nelas por um tempo, e, ao longo e ao cabo da estadia, produzir uma história de amor. Enriquecem os resultados literários da experiência tanto a idiossincrasia dos autores em suas próprias concepções de “história de amor”, quanto o rico arsenal de elementos e vivências culturais que eles recolheram ao longo do período no estrangeiro. No caso de Barreira, Bettega foi a Istambul, na Turquia, onde ficou por um mês para então se dedicar à escrita do romance em questão.

O livro é dividido em três partes (Bariyer, (Entre) e Barrière), em que diferentes narradores e pontos de vista são trazidos para contar a história. No primeiro deles, quem protagoniza a história é Ibrahim Erkaya, um imigrante turco que depois de viver a vida toda no Brasil – imigrou para cá com seis anos de idade –, volta à Turquia em busca da filha Fátima, desaparecida misteriosamente. É justamente a fotógrafa Fátima que narra a segunda parte do livro, contando seu envolvimento com Robert Bernard, um autor de guias de viagens, e sua busca pelo misterioso artista turco Ahmet. Por fim, é principalmente a busca do cultuado artista turco que toma a terceira parte do livro, sendo essa parte, também, o momento em que os vários fios de trama são encordoados num desfecho muito bem arquitetado.

Embora Bettega tenha tido um cuidado especial em deixar temas, questões e elementos recorrendo para criar um terreno comum às três partes do livro – isto é, unidade –, cada parte tem um tom distinto. Em Bariyer, por exemplo, a busca de Ibrahim tem uma atmosfera meio eufórica, de estranhamento e admiração, pois se trata da volta do personagem a uma terra supostamente sua mas com a qual ele não tem mais nenhuma familiaridade. A narrativa tenta recriar a experiência de andar nas ruas de Istambul pelos olhos de alguém que tenta processar gigantesca carga de informação sensível, de tal modo que não consegue parar de pensar e absorver nem por um segundo sequer – daí a prosa ocupando o espaço todo da linha, sem pontos finais, somente breves vírgulas.

As descrições, aliás, corporificam parte essencial do livro. Elas marcam a cadência das narrativas em vários momentos, ocupando lugar especial dentro de cada uma das histórias que estão sendo contadas. Esse recurso, aliás, foi uma das preocupação às quais Bettega se ateve, como ele próprio ressaltou em entrevista:

“Queria sentir a atmosfera da cidade, o que ela podia me passar. Escutá-la e tentar transpô-la para o livro independente da historia que fosse. Fiz um diário – passava o dia andando e anotava tudo: o que via, onde ia. Muita coisa que está na boca e nos atos das personagens são observações e pensamentos meus.”

O intenso uso das descrições, aliás, me deixou com uma impressão errada acerca dos usos narrativos de Bettega. Como havia lido na orelha do livro que o autor é um contista consagrado e que estava se arriscando no formato do romance, pensei que as descrições vinham no intuito de estender a prosa, buscando dar a ela envergadura de romance. Sob esse ponto de vista, as descrições preencheriam os espaços que o autor, acostumado com a brevidade do conto, não conseguira preencher com densidade de trama. Essa impressão, no entanto, foi se dissipando com o andar da trama.

As descrições não são meramente preenchimento de linhas e páginas, mas um dos pilares essenciais do livro. Como se trata das histórias de um imigrante que redescobre uma terra supostamente sua, de uma fotógrafa fascinada pela cor ocre da metrópole turca, de um artista com perspicácia e olhar treinado para enxergar o mundo, e de um autor de guias de viagens atento às potenciais belezas daquele cenário, a visualidade é parte essencial daquele universo ficcional.

Amílcar Bettega soube explorar o que existe para além da superfície da visualidade. Não são somente imagens, mas símbolos no sentido de que carregam significados que extrapolam o visível ao se encadearem com interpretações que remetem, inclusive, àquilo que não é visto. A fotografia que Ibrahim possui como pista para encontrar a filha serve como exemplo, pois presentifica o ausente, isto é, carrega no contraste de sua visualidade o desaparecimento de Fátima.

Ainda que a densa carga de descrições onere a dinâmica da trama, elas estão longe de ser penduricalhos da história. Um belo exemplo disso – talvez uma das melhores questões do livro todo – é o contraste posto entre a vida, as opiniões e a obra de Robert Bernard e Ahmet. O primeiro encontra-se limitado pela superficialidade propagandística dos guias turísticos, o segundo encontra-se de tal maneira comprometido com aquilo que a arte tem de visceral, que sua própria existência está incrustada em sua obra. Ambos se valem das imagens como ferramentas de trabalho, ambos se utilizam da linguagem imagética, mas é Ahmet aquele que fascina e que consegue ir mais fundo na compreensão da babélica metrópole e da vida que pulula nela. A Robert Bernard cabe uma melancólica volta à França e às burocráticas contingências do cotidiano, pois ele não se entranhou na vida que buscou retratar. Ao contrário de Ahmet, Robert foi aquele que viveu Istambul como uma espécie de aventura voyeurística.

Barreira é um livro ponderado que conta sua “história de amor” por meio de outras histórias. O romance alcança suas notas mais altissonantes, na minha opinião, quando vai atrás de Ahmet e de sua visceral arte, momentos, aliás, em que a trama vai amarrando suas pontas e conduzindo-nos a seu desfecho ousado, onde todas as histórias vão convergindo para se enovelarem. Acredito que a potencialmente traumática adaptação de formato foi bem sucedida, mas que a familiaridade de Bettega com o formato do romance e suas peculiaridades desempenharão papel determinante na construção de outras obras, dando-lhe mais liberdade e segurança para ousar e transgredir – como na bela virtuose de Bariyer, por exemplo –, motivo pelo qual espero que Barreira essa não seja a última incursão de Bettega no universo e na linguagem do romance.