Concorde-se ou não com o mundo distópico criado por George Orwell em 1984, há de se reconhecer que o livro é um clássico, seja pelo terror que nos causa pela cogitação de uma hipótese, seja pela força visceral com que a história é conduzida pelo autor inglês.

Não foi pouco o impacto que o livro causou quando do seu lançamento em 1949, e também como vem sendo reelaborado constantemente, parcial ou integralmente. Desde a ideia em seu nível mais abstrato (o de conceber um mundo futurístico muito ruim ou de projetar o futuro de forma fatalista) até elementos esparsos presentes no livro (como o nome do “reality show” Big Brother), o livro incrustou-se no imaginário coletivo de várias formas, mesmo que às vezes inconscientemente.

Diante da força que o livro tem é que Burgess, autor de Laranja mecânica, preocupou-se, principalmente por conta do caráter profético que ela insistentemente imputado a ele. A preocupação dele tem razão de ser, muito do que está dito em 1984 é encarado por leitores incautos como uma profecia (embora ele o seja em alguns aspectos), logo, é como se fosse desenhada não uma hipótese de futuro, mas o próprio futuro, de modo que não se pudesse enxergar outras mudanças (totalitárias ou não) que não aquelas “previstas” por Orwell.

Desse mote é que saem todos os ensaios presentes na primeira parte do livro, intitulada 1984. Burgess procurou não só analisar os elementos nos quais o livro se mostrou profético, mas também desconstruir a visão de que essa era a via na qual o mundo caminhava. Para isso, Burgess se valeu de um profundo estudo sobre Orwell e sobre o contexto histórico no qual escreveu, desmontando assim anacronismos e buscas de alegorias que, segundo ele, não fazem sentido.

A primeira parte é a melhor do livro, a meu ver, pois é na agudeza dos ensaios e no caráter questionador de Burgess que, ironicamente, repousa o melhor de 1985. Como era de se esperar, ele chega a comentar estabelecendo paralelos e distinções entre as distopias dele e de Orwell. Aliás, ele prefere usar a palavra “cacotopia” para se referir às visões futurísticas pessimistas, pois, segundo ele, essa palavra transmite melhor o sentimento de caos e de mal estar características dessas produções.

Ao pesquisar a fundo a obra de Orwell e sua história, Burgess conseguiu alcançar uma familiaridade com o tema que lhe permitia analisar detalhes aparentemente ínfimos do livro sem perder de vista o tema maior. Em 1985, ele é capaz de analisar a forma de criação de Orwell, suas intenções políticas e seus julgamentos morais e éticos para deslindar reflexões cruciais para compreender o livro e, de alguma forma, também a própria literatura.

A essencialização da distopia orwelliana carrega muitos problemas, pois ao torná-la tão emblemática enquanto visão de futuro, corre-se o risco de tomá-la como verdade ou única visão possível. O método de criação de Orwell se dá pela construção de uma história que valorize essa visão distópica (ou cacotópica), logo, os elementos constituintes dessa visão estarão evidentes o suficiente para sustentar o “universo ficcional” em pé. Acontece, pois, que a realidade ocorre à revelia da ficção, de modo que os pilares que sustentam o zeitgeist não se mostrem tão evidentes no real como estão no ficcional.

Burgess, embora não integralmente, tem o endosso da História para fazer tais afirmações, pois muito do que Orwell escreveu não veio a se tornar realidade. Muito da aura profética em torno de 1984 se deu por conta das leituras feitas a seu respeito. É preciso depurar os elementos ficcionais e reais para que se tenha um foco mais preciso quando da análise da realidade através da ficção. E Burgess acerta em diversos pontos ao fazer isso.

É preciso fazer menção ao ensaio Os filhos de Bakunin, onde Burgess explora eventos de sua época (o livro foi publicado em 1978), principalmente os movimentos de contestação “anti-uma porção de coisas”. O autor não poupa nas críticas que faz a parte dos jovens desses movimentos, que engrossam as fileiras sem saber exatamente que posicionamentos possuem ou que estão lá só para serem contra. Burgess enxerga como preocupantes e inclusive perigosas tais ações, não em seu caráter questionador e reivindicatório, mas na medida em que se limitam à oposição.

A questão que perpassa todo o ensaio é a liberdade, e Burgess busca em vários autores clássicos as bases para questionar tais ações. E eis que surge uma passagem bastante espinhosa, mas profunda em suas asserções, tanto em relação ao tempo do autor, quanto em relação a atualidade (em diversos sentidos):

“Por falta de conhecimentos sobre a natureza da liberdade e das condições que tornaram válido o exercício dessa liberdade, muitos jovens são levados a abraçar doutrinas políticas de opressão. Ao desprezarem a tradição e a educação que transmite essa tradição, estão desprezando sua única forma de proteção contra a tirania. Em outras palavras, tornar-se-ão incapazes de entender o verdadeiro significado da opressão.” (p. 80)

E arremata:

“O importante é que ele não deve agir sem pleno conhecimento do significado de suas ações. Esta é a condição de sua liberdade.” (p. 83)

A segunda parte do livro é intitulada 1985 e é a visão de Burgess acerca do que uma cacotopia mais apurada do futuro seria, diferente, em sua opinião, do mundo criado por Orwell.

No mundo de 1985 não existe o Grande Irmão, mas existe uma entidade ramificada que exerce poder quase totalitário a respeito de diversos aspectos da realidade, o sindicato. São eles que regulam os regimes de trabalho, a gestão da produção e as reivindicações sociais que porventura surjam do seio das fábricas e dos demais locais onde se encontram trabalhadores.

Na cacotopia, os sindicatos deixaram de ser órgãos de representação dos trabalhadores e de reivindicações democráticas para, por conta de uma hipertrofia e burocratização, se tornarem aparatos legais de coerção dos trabalhadores, indiscriminadamente, deturpando em vários sentidos as razões que os tornavam válidos. As reivindicações dos sindicatos se tornaram opressivas na medida em que os clássicos responsáveis pela exploração dos trabalhadores, que outrora eram seus adversários, se enfraqueceram e alteraram toda a correlação de forças.

O local onde se passa a história é Tuclândia (nome pelo qual atende então a Inglaterra). O protagonista da história é Bev Jones, um sujeito que trabalhava em uma fábrica de chocolate e que por conta da greve e do regime de gestão sindical, fica impossibilitado de trabalhar, ainda que suas inclinações difiram das do sindicato e dos grevistas. Ele possui uma filha, chamada Bessie e uma mulher, que morre em um incêndio logo no início do livro, por causa de uma greve dos bombeiros.

As greves são eventos constantes no universo de 1985, eles deixaram de se embasar em ideais concretos e em tradições contestatórias históricas, de modo que o que as norteia e as faz explodir são banalidades quaisquer. Boa parte dos trabalhadores que aderem às greves são retratados como jovens que desconhecem as causas e as razões de suas lutas, vivendo em uma condição de quase imbecilidade. Essa característica é estereotipada na filha de Bev, Bessie, que mentalmente é um vegetal, sem reação alguma, vivendo alienada a sua realidade, consumindo passivamente as imagens imputadas a ela pela televisão.

Outro dos pontos importantes acerca da realidade de 1985 é a presença de árabes e muçulmanos em diversos locais e situações, o que indica que Burgess compreendeu como uma das possíveis características do futuro a presença árabe no ocidente seria cada vez maior, e se daria apesar da alteridade cultural e política. A força do capital (ainda mais por conta de possuírem poços em tempos de crise do petróleo) lhes outorga a capacidade de se adaptarem apesar dos pesares.

Justamente pela discordância de Bev em relação aos rumos pelos quais anda a realidade que a trama do livro ganha movimento. Diante da situação de supremacia sindical, Bev resolve mover uma cruzada para livrar-se das incumbências e obrigações às quais está atado por conta da representação dos sindicatos. É daí que decorre toda a sucessão de eventos e os questionamentos morais, políticos e filosóficos que Burgess move ao longo da obra.

Na minha opinião, a segunda parte deixou a desejar em relação a primeira. Elas dão a impressão, inclusive, de serem ideologicamente bem diferentes. O livro parece orbitar em torno de um núcleo que tangencia todas as distopias: a liberdade. A busca obstinada de Bev (e de Burgess) por liberdade dá corpo a questões que envolvem boa parte das preocupações pujantes e presentes em toda a História da humanidade, e de maneira talvez mais dramática no século XX. Estruturas de representação política, o Estado, a tecnocracia e a tragicidade que emana desses elementos nesse século é que (des)coloriram as distopias, sejam elas orwellianas, huxleyanas, burgessianas, gibsonianas etc.

Se na primeira parte do livro Burgess explora a historicidade (ou seja, a condição não-universal e não-absoluta) da obra de Orwell, cabe entender que a visão cacotópica do próprio Burgess também está investida de historicidade. Creio que esse é um dos pontos pelos quais a segunda parte de 1985 não funciona tão bem quanto a primeira: mesmo ao criar uma micro-trama, o autor lida com as questões de modo muito abstrato.

A cruzada de Bev é um belo exemplo disso, pois ao encarar uma briga com a verve coercitiva do sindicato, ele toma um caminho de negação per se, sem a apresentação de uma alternativa, ou seja, ele está preso na situação apontada pelo próprio Burgess na primeira parte, a de que ser contra por ser contra pode endossar regimes de opressão na medida em que se perde a essência dos próprios valores, princípios e ideais.

Até onde conhecemos a realidade de 1985, apesar de serem chamados de sindicatos, os órgãos apresentados estão mais para cartéis disfarçados ou grupos semi-mafiosos do que outra coisa. Ou seja, desse sindicalismo deturpado surge a busca pela liberdade, mas em moldes abstratos, a liberdade que Bev procura é mais um conceito do que algo concreto.

Vale notar que em 1978 eventos importantes assomavam o universo de perspectivas com o qual os sujeitos dialogam. O horizonte comunista estava em declínio e o capitalismo assomava agigantado pelo arrefecimento de certos ideais e projetos de sociedade que por tanto tempo tinham encampado a disputa política em nível mundial. Não me parece, portanto, desprovido de sentido que Bev buscasse algo abstrato, distinto do que via ou que já tinha conhecido ou experimentado.

BURGESS, Anthony. 1985. Tradução de João Maia Neto e Júlia Tettamanzy. Porto Alegre: L&PM, 1980.

(segundo o site da L&PM, o livro, infelizmente, encontra-se esgotado)