No segundo dia eu decidi me despedir da luz do sol, do ar fresco e da possibilidade de um jantar decente para assistir cinco filmes seguidos. Teve sessão atrasada, projeção com defeito e uma senhora com cheiro de tristeza que chegou no meio do filme, se sentou do meu lado, comeu umas tâmaras e foi embora. Definitivamente, estamos na Mostra.

Para Aqueles em Perigo – Em uma vila de pescadores na Escócia, Aaron saiu para o mar com seu irmão Michael pela primeira vez. Nessa noite, um acidente matou todos no barco, exceto ele. O menino torna-se um pária, um símbolo de má sorte e o lembrete de todos os filhos que nunca voltaram, como o demônio do mar das histórias que contam para as crianças.

Paul Wright constrói seu filme como um quebra-cabeças de duas mãos: o espectador recolhe peças do que aconteceu, enquanto Aaron perde a si mesmo. É um filme triste, delicado, cruel e belíssimo.

Los Tentados – Há um tipo de filme muito comum entre os recém-saídos das escolas de cinema:  “aquele em que nada acontece porque o diretor deseja captar a banalidade da existência” e Los Tentados é um desses. O longa acompanha alguns dias de Rama e Lule, um jovem casal de férias no litoral da Argentina e não passa disso: um retrato de dias comuns. Não há reflexão, poesia, amargor ou qualquer outra coisa na banalidade desse casal, não há nada além de uma sucessão de acontecimentos vazios. Não é um filme ruim, já vi muito piores nesse “gênero”, mas me parece desnecessário, especialmente quando a sessão atrasa e rouba aqueles cinco minutos em que eu poderia comprar uma pipoca.

Metamorphosen – Na região dos montes Urais, divisa entre as partes europeia e asiática da Rússia, está Mayak, um dos maiores complexos nucleares do país. Em 1957 uma explosão na usina provocou uma contaminação pelo menos tão grave quanto a de Chernobyl, contudo, enquanto a radiação da usina ucraniana foi detectada pelos suecos e medidas adequadas foram exigidas pela comunidade internacional, o acidente perdido no meio da URSS foi escondido até a década de 1990.

A área não foi isolada e a população não foi removida, um conjunto de três vilarejos segue existindo na região de maior poluição atômica do mundo, e é sobre essas pessoas que fala o documentário de Sebastian Mez. O filme é fotografado em preto e branco, de forma sóbria, fria e austera. Ao contrário do que se esperaria de um documentário sobre uma tragédia dessas proporções, Metamorphosen não comove, não busca explorar as emoções dos objetos ou do espectador. Ao invés disso, o que se vê é uma secura quase ofensiva, uma distância indiferente, como se na linguagem de seu filme Mez buscasse espelhar a indiferença profunda das autoridades que cuidaram daquelas pessoas. A beleza das imagens contrastada com a dureza da abordagem criam uma experiência diferente de qualquer documentário que já encontrei.

Querida Courtney – Quase um Quase Famosos Alemão. Obcecado por Saiska, uma aspirante a groupie de sua pequena cidade alemã, Paul Thomas decide compor músicas e tornar-se um rock star. O problema é que sua melhor música já foi gravada por uma tal banda chamada Nirvana com o título de “Smells Like Teen Spirit”.  Convencido de que isso o fará ganhar Saiska, ele parte em busca de Kurt Cobain, acompanhando a turnê da banda pela Alemanha.

No meio do caminho Paul Thomas encontra um crítico de música, uma nova garota e a si mesmo. E um Kurt Cobain completamente drogado. Tenho simpatia por filmes em que o tema fundamental é a música, principalmente se for o rock, e a forma como ela pode moldar a vida das pessoas. Querida Courtney é divertido e bem feito, com bons diálogos e milhares de piadas internas para os fãs da banda e colecionadores de informações inúteis da cultura pop em geral, aqueles que entendem porque em um filme sobre “Smells Like Teen Spirit” não se ouve a música uma única vez.

Duas Mães – Katja e Isa querem ter um bebê, mas a legislação alemã não autoriza expressamente a doação de esperma para casais lésbicos e a maioria das clínicas prefere não fazê-lo. O filme acompanha a saga do casal para engravidar, as milhões de tentativas, o dinheiro gasto, o desgaste.

Baseado nas experiências de mulheres reais, o filme é honesto a ponto de desarmar e sutil na abordagem dos medos e anseios das personagens. Provavelmente o sexo entre duas mulheres nunca foi retratado de forma tão próxima, real e bonita. Entretanto, essa honestidade não o impede de cair em clichês fáceis, como a oposição entre “masculino/racional” e “feminino/desorganizado”. É um filme único em seu olhar para um certo universo, mas que tropeça nas escolhas narrativas.