Ao me deparar com o faroeste dirigido e estrelado por Tommy Lee Jones, confesso que de início senti certo desânimo e sono, e é a isso que se pode creditar o atraso desta crítica, escrita cerca de um mês depois da estreia do filme no Brasil, e a seu fraco desempenho de bilheteria, tendo rendido mundialmente cerca de U$ 2,5 milhões diante de um orçamento estimado em U$ 16 milhões1. Mas vamos combinar: sabemos que o ator não é muito afeito à vivacidade, sua própria carreira foi construída em torno dessa persona sisuda e de pouca paciência, em filmes como O Fugitivo (1993) e Onde os Fracos Não Têm Vez (2007). Credita-se a ele, inclusive, certa confissão de não se achar dotado de nenhum senso de humor e, por isso, não achar graça em nada. Assim, fica um pouco difícil pensar um momento adequado para assistir a esse filme (domingo à tarde nem pensar!) sem correr o risco de cochilar nos primeiros minutos.

Porém, pensando mais a fundo, lembramos que muitas vezes ele parece ter se esforçado em tentar nos surpreender, mesmo que incorporando um histriônico Harvey Dent/Duas Caras no ruim Batman Eternamente (1995) ou, mais recente, fazendo a insossa comediazinha romântica Um Divã para Dois (2012), com Meryl Streep.

Assim, certa madrugada insone resolvi encarar Dívida de Honra, faroeste baseado no romance de Glendon Swarthout (1918-1992), cuja produção literária já foi adaptada ao cinema uma meia dúzia de outras vezes. Se não gostasse, poderia pelo menos me servir de antídoto à insônia (filmes ruins são ótimos soníferos, bem como os livros ruins), mas eis que o filme consegue ser um faroeste surpreendente ao dar centralidade às personagens femininas, seguro por manter a calma e o ritmo pausado que o gênero (e essa história específica) pedem, porém sem ser arrastado, e inventivo em sua boa direção, com destaque à belíssima fotografia do mexicano Rodrigo Pietro (de Argo e O Lobo de Wall Street).

Produzido pelo diretor francês Luc Besson (O Profissional) e contando com um elenco recheado de nomes poderosos em papéis coadjuvantes, como John Lithgow (da série Dexter), James Spader (da série The Blacklist) e Miranda Otto (Flores Raras), Tommy Lee mostra-se mais maduro do que em seus filmes anteriores, especialmente em Três Enterros (2005), embora essa ainda tenha sido sua direção mais aclamada.

Contando com a duas vezes vencedora do Oscar de Atriz Hillary Swank como protagonista, o filme nos apresenta Mary Bee Cuddy, uma fazendeira solitária que se dispõe a atravessar o perigoso e inóspito deserto de Iowa para entregar três mulheres que enlouqueceram diante da morte dos filhos (numa espécie de depressão pós-parto potencializada), aos cuidados do reverendo de uma cidadela maior. Enfrentando as dificuldades da natureza selvagem e a distância do seu destino, Mary salva a vida de George Briggs (o próprio Tommy Lee), que a partir de então se torna assistente dessa jornada, como forma de pagar essa dívida de gratidão.

A história situa-se no ano de 18542, com claras indicações de um contexto de transição entre o “alto” Velho Oeste e o começo de uma fase de maior estruturação político-burocrática que logo daria início a um processo de urbanização matador (que digam os índios!). Não estamos aqui naquele mesmo cenário inóspito dos filmes de John Wayne, como Rio Bravo (1959), mas num momento imediatamente posterior, mas que não deixa de ainda guardar alguns dos ranços e hábitos do profundo Velho Oeste. Dois exemplos: logo no começo, quando Mary Bee oferece um jantar ao colega Bob Giffen (Evan Jones) e confessa, com certo espanto e fascínio, que fizera uma torta com pêssegos enlatados comprados na mercearia. Outro exemplo, quando a mesma personagem faz um depósito bancário, a fim de garantir a assistência do canastrão Briggs, que ele só poderá sacar na cidade de destino.

Para além dessa inovação temporal, curiosamente rara de se ver em filmes do gênero, que costumam construir sempre a mesma ambience temporal e, com isso, limitar nossa percepção sobre o período, também está o foco narrativo nas personagens femininas: não apenas a fazendeira mandona e corajosa de Hillary no foco nessa história, mas também as três mulheres “loucas” transportadas durante o inverno no deserto no comboio de madeira guiado por Briggs e Mary Bee. Elas são interpretadas com qualidade pela dinamarquesa Sonja Richter, cujo história familiar serve também para indicar a presença de imigrantes, incluindo nórdicos, nos EUA já naquele período; Grace Gummer, filha de Meryl Streep; e a já comentada Miranda Otto, uma atriz de quem gosto muito e ainda pouco valorizada.

Picture1
Sensibilidade estética e dramática ao contar as trágicas histórias de três mulheres no Velho Oeste.

Por mais clichê que esse tipo de análise pareça, existe sim todo um simbolismo na representação dessas quatro mulheres cruzando o deserto, a relação da terra com seus problemas mentais em decorrência da maternidade e a presença do velho Briggs como símbolo do “velho” Velho Oeste em pleno processo de transição, como uma porta que começa a se abrir para um nova estrada (para o bem e para o mal) que os EUA enquanto nação pela primeira vez começavam a traçar.

Como todo faroeste, essa é uma história bem americana, com elementos culturais e processos sociais só evidentes para essa cultura. Em termos de identificação, para nós, não estadunidenses, há apenas os elementos emocionais, que ainda assim são satisfatoriamente bem explorados.

Ao lado de Hillary Swank em atuação exagerada e mal pontuada, Tommy Lee se destaca ao apresentar um personagem pouco óbvio, surpreendente por não se portar como um clichê western. O desenvolvimento de sua empatia para com aquelas mulheres e o arco de sua personagem, que paulatinamente assume o protagonismo da trama, são verdadeiramente graciosos, desde sua primeira cena, em situação constrangedora, até as últimas, na bela interação com a adorável Hailee Stenfield (de Bravura Indômita), ou quando encontra a esposa do reverendo (a própria Meryl Strep) a quem deve entregar as moças. Aqui, aquele que um dia se disse “sem senso de humor” consegue ser o alívio cômico da trama, em cenas de dança e cantoria que são impagáveis e muito bonitas.

Assim, esse filme que parece não ter sido construído sobre muitas pretensões acaba ganhando dois ou três fortes motivos para ser levado a sério. É evidente que Tommy Lee não pretendeu fazer um filme que revolucionasse ou tampouco fizesse renascer o gênero western, mas sim que nutre pelo período histórico um interesse genuíno que o motiva a passar para trás das câmeras, vide outras duas direções suas nesse mesmo contexto (The Good Old Boys para a televisão e o já mencionado Três Enterros). E diante de Dívida de Honra, fica claro que o eterno coadjuvante carrancudo e querido de Hollywood tem muitas outras habilidades a nos apresentar.

 

  1. Fonte: Imdb.
  2. Fonte: Adoro Cinema.