Bechdel. Caro leitor, essa não é a primeira vez que você vê esse sobrenome no Posfácio. Ela já tinha aparecido em uma “resenha” 1 minha para Jogos Vorazes. Foi nela em que falei sobre o teste Bechdel, que conheci no canal do YouTube “Feminist Frequency” – uma avaliação acerca da representatividade feminina em filmes: se houver pelo menos duas mulheres (que tenham nomes) que conversam entre si sobre outro assunto que não um homem, o filme passa no teste. 2

O teste Bechdel foi inspirado por uma das tirinhas da série Dykes to watch out for 3, publicada de 1987 a 2008 por Alison Bechdel em numerosos jornais. A quadrinista é mais famosa, no entanto, por Fun Home, eleito livro do ano pela revista Time – segundo a orelha, “a única HQ a receber a distinção”.

Enquanto você me pergunta Mas e daí? Quem liga para o que essa revista Time pensa? Diz aí, Tuca: essa HQ vale a pena mesmo?, eu já tenho a resposta na ponta da língua: Ô. 4 Já um clássico, Fun Home trata da relação entre a autora e seu pai. Depois que ele morre atropelado por um caminhão (forte é a suspeita de que tenha sido suicídio), Bechdel investiga obsessivamente a vida do pai, relacionando-a à obra de Proust – inclusive no que tange à homossexualidade enrustida.

Não é dedo na ferida. É saca-rolhas no osso. Sem anestesia.

Em Você é minha mãe?, chegou a vez de ela explorar sua relação com sua genitora. Em vez de Proust, Virginia Woolf é a escritora modernista escolhida para traçar um paralelo. Como Carol Bensimon escreveu em uma coluna, não gostaria de ser parente dessa quadrinista.

Você é minha mãe? não é um livro fácil de ler. Sonhos, visitas à analista, conversas telefônicas com a mãe (devidamente transcritas no computador enquanto ocorriam, a fim de que a quadrinista pudesse usar o material posteriormente), romances, dados históricos, fotografias, recortes de jornal, poemas, cartas, estudos de psicanálise, tudo isso está misturado na graphic novel. Vemos Alison bebê, criança, adolescente, na faculdade, conversando com o pai, escrevendo Fun Home, discutindo suas tirinhas lésbicas com a mãe, discutindo a relevância da escrita autobiográfica, escrevendo o próprio Você é minha mãe? e recebendo o feedback materno a respeito dos primeiros capítulos. Não são poucas as vezes em que uma coisa se sobrepõe à outra: narração vai para um lado e os quadrinhos vão para o outro, sobrando ao leitor a tarefa de fazer a equação dialética e extrair o significado daquilo tudo. Deve ter dado um baita trabalho ao Érico Assis, o responsável pela tradução.

Não é um livro fácil, não é um livro leve, mas… que livro! Finda a leitura, não resta dúvidas da coragem 5 de Alison Bechdel ao concluir uma obra desse porte. E uma admiração possivelmente maior pela mãe dessa mulher.

Eu leria um livro escrito por esta. Sem titubear.

  1. Defina “resenha”.
  2. É incrível a quantidade de filmes que não passa nesse teste simples. Se incluirmos o elemento “tempo” na conversa (digamos, trinta segundos de conversa sem falar do protagonista masculino, o único com o qual a plateia costuma se importar), o teste é alçado a “praticamente impossível”.
  3. Em tradução livre: “Sapatas para se prestar atenção” (ou “para se ficar de olho”). Inédita no Brasil.
  4. Abreviação de “Ô, se vale a pena!”.
  5. Não é bem esta a palavra correta, mas é a primeira que me vem à mente.