Deve ter uma parte de mim que até gostou do bacharelado em Direito. Latim é bonito demais, poxa. Essa expressão no título, por exemplo, diz respeito a você começar uma obra no meio do desenrolar dos acontecimentos, sem nem um “Era uma vez”. Pegar o bonde andando, isso. Começar sem começo.

In medias res é pular a introdução (do livro, da quarentena) e encontrar Mo (e a si mesmo) sem transar há 8 meses. Bem na primeira tirinha de The Essencial Dykes To Watch Out For (que chamarei de Dykes, tal como Elvira Vigna apelidou seu Como se estivéssemos em palimpsesto de putas de Putas), Mo reclama do período de seca. Não sem razão: sapio, demi e, claro, militantessexual, além de insegura as fuck, as opções não são muitas. 

Ainda que não seja exatamente a protagonista, Mo é um ponto de apoio, a nossa janelinha do bonde. Inicialmente, conhecemos outras personagens (que, na capa, atualizam a famosa pintura The Gossips, de Norman Rockwell) sempre pela relação delas com Mo. Até cogitei comparar as neuroses da personagem com as de Jerry Seinfeld e Woody Allen, visto que comparações sempre ajudam quando apresentamos algo, mas é fato que não demora muito para que percebamos que a mente de Mo tem uma neurose muito bechdeliana.

Aliás, se não fica muito claro com o traço tosco das tirinhas iniciais, no decorrer do livro a arte de Bechdel vai se aprimorando e deixando clara a semelhança física entre Alison e seu alter ego. Daí você para o livro, in medias res, compara Mo à versão desenhada da autora na introdução e entende tudo. Ou quase.

Essa percepção não diz respeito apenas ao desenho, mas parte principalmente da leitura de outras obras da autora, conhecida pela HQs autobiográficas Fun Home e Você é minha mãe?. A primeira explora a figura do pai, especialmente quanto à sua sexualidade, e as circunstâncias de sua morte: teria sido um acidente ou suicídio? A segunda é um amálgama de sessões de terapia, estudos psicanalíticos e conversas de telefone com sua mãe, gravadas sem o consentimento dela (incluindo a sua reação quando descobre a obra que está sendo produzida). Acenos a esses títulos aparecem nas tirinhas: o sogro de Mo é a cara do pai em Fun Home; uma das tirinhas é intitulada Are you my mother?, mesmo não tendo relação alguma com o romance gráfico homônimo. 

No entanto, supostamente, Dykes era seu lado menos autocentrado e mais generoso com o que via ao redor. Ela só queria um tantinho mais de representatividade. 

“Let me tell you, my friends, those were benighted times. Despite what my mother thought about my lesbianism, being an out dyke was not an easy row to hoe. We had no ‘L Word’. We had no lesbian daytime TV hosts. We had no openly lesbian daughters of the creepy vice president. (…) I saw my cartoons as an antidote to the prevailing image of lesbians as warped, sick, humorless, and undesirable. Or supermodel-like olympic pentathletes, objective fodder for the male gaze. By drawing the everyday lives of women like me, I hoped to make lesbians more visible not just to ourselves but to everyone. If people could only see us, how could they help but love us?”

(BECHDEL, Alison. Op. cit. p. XV)

Pela representatividade, aliás, foi como conheci Alison: antes do livro ser redescoberto na minha estante durante o Adeus às Traças, antes de ganhar pela segunda vez o Dykes e esquecê-lo entre as pilhas de livros, antes de chorar o roubo do presente, antes de um amigo querido trazer-me o livro como lembrancinha de Nova Iorque por conta dos meus textos para o Posfácio, eu conheci o teste Bechdel e não conseguia parar de falar sobre ele. Resumidamente: a obra tem duas mulheres com nomes, que conversam entre si sobre algum assunto que não seja homem? Se sim, ela passou no teste Bechdel.

Às vezes, um presente não é apenas um presente. Gigio queria me dar uma tirinha, emoldurada numa edição em capa dura e embrulhada preciosamente com imenso potencial: se uma tirinha me inspirou tanto, o que uma compilação delas, que atravessa décadas, não poderia fazer? Ele acreditava em mim, ele sempre acreditou em mim, na minha escrita, na minha vida em São Paulo, que eu ia dar certo, que eu dei certo: esse é um resumo da minha leitura desse livro até este ano, só de olhar pra ele na estante.

Cinco anos depois, quando finalmente comecei a relação não platônica com o livro (alguns chamam isso de “ler”), descobri que no final das contas a tirinha que inspirou o teste Bechdel não consta na edição: ela é de 1985, e a primeira da antologia é de 1987. Desse esse ano até 2008, são muitos arcos narrativos, muita evolução dos personagens (inicialmente estereótipos, grande parte deles ganha vida e complexidade no decorrer dos anos), muitos comentários políticos e sociais. E, por mais que deteste a vagueza da frase anterior, um mal das minhas resenhas, sei também que não dou conta de resumir melhor suas quase 400 páginas.

Demorei alguns meses para terminar a leitura. Não acredito que dê pra ler Bechdel rapidinho, na leitura costumeira de quadrinhos. Cada tirinha tem narração, diálogo, figuras humanas e objetos de cena, que não necessariamente estão em harmonia: narração e diálogo se desencontram; certas ironias do que é falado se perdem se não prestamos atenção a sutilezas na feição dos personagens; rótulos, manchetes de jornal, títulos de livros, dizeres nas camisetas que mudam de um quadrinho para o outro. Cada tirinha tem muita informação, é só isso que digo.

You can’t pin things down without CHANGING them, somehow.

(BECHDEL, Alison. Op. cit. p. XVII)

Nesse momento da introdução, Bechdel fala do momento em que se deu conta de que não era meramente observadora, ao representar tanta diversidade que a rodeava. Muitas jovens revelaram que suas Dykes foram as primeiras lésbicas que conheceram, verdadeiros exemplos e modelos de comportamento. Sabe quando as pessoas dizem “ai, eu sou muito Carrie, você é Samantha, e ela uma mistura de Miranda com Charlotte” (ou “eu sou um Joey-Phoebe, nunca que daria certo com um Ross-Monica”)? Bechdel conheceu entre suas fãs várias Gingers, Jasmines, Janis, Glorias, Clarices, Cynthias, Jezannas, Harriets, Malikas, Sydneys, Tonis, Theas, Samias, Sparrows, Mikos e… Mos.

Como artista, ela parece (ou finge muito bem estar) frustrada por ter se tornado “convencional e tediosa”. Como leitor, julgo que ela não podia ter sido mais certeira no que a jovem Alison se propôs. Afinal, “If people could only see us, how could they help but love us?