por Rodrigo Pinder

Ben Stiller leva uma carreira um tanto irregular como ator, uma chuva de comédias pastelão e franquias direcionadas ao público infantil que respinga alguns projetos de prestígio artístico aqui e ali (Os Fantásticos Tenenbaums, Greenberg). Como diretor, ele é no mínimo singular, tendo adquirido a mania questionável de escalar a si mesmo em papéis de destaque que talvez fossem mais adequados a outros atores. Em Zoolander, por exemplo, ele interpreta o modelo masculino mais famoso do mundo, uma piada que é ao mesmo tempo uma demonstração de ego.

Todavia, é inegável que ele é ambicioso. Trovão tropical em geral não funciona justamente por tentar fazer malabarismo com muitos elementos, satirizando a exorbitância de blockbusters hollywoodianos ao mesmo tempo em que tenta gerar as mesmas emoções passageiras desses projetos e comentar sobre os estereótipos dos cargos envolvidos em suas produções. Não há nada parecido, mas o filme acabou deixando o humor um pouco de lado (as melhores piadas são os trailers falsos antes dos créditos iniciais), o que teve um resultado previsível – o longa mal se pagou nas bilheterias.

A vida secreta de Walter Mitty, baseado no conto mais famoso do escritor e cartunista James Thurber, é um projeto consideravelmente mais acessível. O conto já havia sido adaptado para o cinema, em uma versão de 1947 com Danny Kaye no papel principal, lançada aqui com o título O homem de 8 vidas. A versão de Stiller é singularmente excessiva: o uso constante de efeitos digitais fica claro logo no começo (bom, isso já estava claro no trailer) e eventualmente estamos viajando para locações remotas no hemisfério norte (uma ubiquidade de product placement certamente ajudou a desinflar o orçamento).

Recentemente, o comediante Patton Oswalt descreveu o filme em um podcast como uma “comédia épica,” e isso define bem as ambições de Stiller e do roteirista Steve Conrad (À procura da felicidade, O sol de cada manhã): trata-se do tipo de filme onde um personagem recebe um SMS e o texto aparece escrito em letras enormes na superfície de uma montanha na Islândia. Por baixo de toda essa overdose de elementos visuais chamativos, contudo, há uma história bem simples, uma jornada no esquema Joseph Campbell, com um herói que deve sair de seu mundo comum confortável e embarcar em uma aventura perigosa que o mudará radicalmente.

Walter Mitty é um homem que passa muito tempo dentro da própria cabeça, escapando de sua vida anônima através de fantasias absurdas onde protagoniza cenas heroicas cheias de ação e romance. Walter trabalha faz 16 anos processando negativos no laboratório de fotografia da revista Life, que está no processo de fechar suas portas. O fotógrafo Sean O’Connell (Sean Penn) tirou uma foto que serviria como a capa da última edição impressa da revista. Sean é um fotógrafo aventureiro que constantemente viaja o mundo e se coloca em situações perigosas (ele manda um bilhete pedindo desculpas pelo sangue nas fotos que tirou em uma área de guerra), o que funciona como um lembrete narrativo da existência estática do protagonista.

Walter é incumbido de revelar a tal foto (que Sean define como “a mais importante de sua vida”), mas o negativo desaparece sob circunstâncias misteriosas. Com seu emprego ameaçado, Walter tem que sair em uma busca pelo negativo perdido, o que não se mostra nada fácil, já que Sean não tem endereço fixo ou celular. É claro que essa aventura fará com que Walter viva em pouco tempo muito mais do que em toda sua vida até então, tornando seus devaneios gradativamente menos necessários.

Antes de a jornada propriamente dita começar, no entanto, prepare-se para várias instâncias daquele recurso comum em comédias, onde um personagem tímido e passivo se imagina fazendo coisas radicais e agressivas, apenas para voltar à realidade num corte seco. Essas fantasias em geral envolvem um desejo de parecer atraente para a colega de trabalho por quem Walter é apaixonado (Kristen Wiig) e variam em termos de tom e êxito, incluindo cenas de ação super-heróica, uma sátira bizarra e inesperada de Benjamin Button e uma performance acústica de Space Oddity por parte de Wiig. Esta está carismática como sempre, num papel que, apesar de poder ter sido melhor desenvolvido, não se resume a um objeto de desejo: para encontrar Sean, Walter deve analisar as fotos dos negativos adjacentes ao que desapareceu em busca de pistas sobre o paradeiro do fotógrafo. A aproximação entre o casal começa a acontecer quando ele a recruta para ajudar na investigação, sua primeira demonstração de iniciativa.

A vida secreta de Walter Mitty é mais engraçado que Trovão tropical, mas ainda tem diversos problemas, o principal sendo a maneira com que grava seus temas na pele do público com um ferro quente. O fato de Walter trabalhar na revista Life é obviamente significativo – a narrativa tem um tom de mensagem inspiracional, com platitudes sobre A Importância De Viver A Vida sendo declamadas em vários pontos e cenas de pessoas correndo em câmera lenta enquanto Arcade Fire (ou bandas que soam como o Arcade Fire) toca na trilha sonora. Em certos momentos parece que estamos vendo um videoclipe de indie rock, o que, junto ao uso de CGI, causa certa dissonância cognitiva com outra camada temática: o velho dando lugar ao novo, o digital substituindo o analógico, etc. Um dos pontos centrais da premissa envolve a forma impressa da Life sendo cancelada para dar espaço a uma versão online, fato que é ostensivamente apresentado como uma tragédia.

Esse ângulo é enfatizado de diversas formas. O executivo principal responsável pela transição (Adam Scott, pouco utilizado em um papel diametralmente oposto ao que interpreta na série Parks & Recreation), por exemplo, é basicamente o único antagonista de Walter, usa barba apesar de ficar ridículo de barba, (porque barbas estão na moda?) e é mostrado como um panaca superficial que não parece dar a mínima para os vários empregados demitidos no processo. O fotógrafo Sean O’Connel, por sua vez, é uma figura mítica, descrito como um dos poucos a ainda usar máquinas analógicas, e mostra uma afinidade quase sobrenatural com a natureza e culturas primitivas. Ou seja, o filme glorifica o jeito “old school” de fazer as coisas ao mesmo tempo em que se vale de recursos estéticos modernos. Seja como for, a mensagem é válida (há realmente algo especial em processos de publicação mais artesanais), mas poderia ter sido explorada com mais sutileza e ambiguidade.

Apesar de permeada de sentimentalismo, a trama tem uma estrutura que em geral mantém o interesse, combinando o mistério da investigação do negativo desaparecido à aventura global de Walter, que vai ficando progressivamente mais perigosa e mirabolante. Certos elementos podiam ter sido mais bem explorados (quando um boneco do Stretch Armstrong é colocado na mala que Walter leva em sua viagem, fica óbvio que o brinquedo será útil em algum ponto, mas isso acontece de uma forma não muito criativa). O filme também não parece saber muito bem o que fazer com o romance (que é estabelecido na primeira cena como a motivação principal do protagonista), incluindo um conflito desnecessário e mal desenvolvido no terceiro ato só porque manuais de roteiro dizem que filmes precisam ter conflitos no terceiro ato.

Todavia, o gênero principal aqui é a comédia, e o humor frequentemente funciona, em geral graças aos coadjuvantes, com destaque para Ólafur Darri Ólafsson como um piloto de helicóptero depressivo que oferece insights sobre a Groenlândia (“Nunca traia sua mulher num país com oito habitantes”) e de Patton Oswalt como um funcionário do serviço de namoro online eHarmony, que consegue fazer bastante com uma presença que se resume basicamente a uma voz no telefone. E a revelação final, apesar de previsível e meio piegas, é tão sincera e desprovida de cinismo que é difícil não se emocionar pelo menos um pouquinho.

Avaliação: **1/2 (de *****)