Um dos mais importantes memorialistas do Brasil, o escritor e médico Pedro Nava ainda não é um nome facilmente reconhecível pela maioria dos leitores, porém já foi muito lido quando do lançamento do primeiro volume de sua memorialística, Baú de ossos (1972), agora reeditado pela Companhia das Letras. Além desse volume, há outros seis, sendo um incompleto, que o autor escreveu e publicou em um intervalo de apenas dez anos. Como pode se imaginar, ele tinha muito que contar desde seu nascimento em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1903.

Acredito que toda pessoa, já em sua velhice, realmente tem muitas histórias para botar no papel, porém o que distingue Nava dos outros é, além do fato de realmente ter escrito tudo isso, ter nos dado obras de alto nível literário. Baú de ossos é um livro grande. Se pensarmos que se trata, na verdade, apenas do primeiro volume de uma obra maior, as Memórias, nosso horizonte parece ficar mais longínquo. Há um pouco de tudo nesse “baú”, mas cada parcela dele nunca parece ser quebrada, fragmentada. O escritor parece ser alguém que já viveu muito e consegue ver as peças se encaixando no quebra-cabeça de sua vivência.

A partir da tradição dos grandes romances quase enciclopédicos franceses, com Em busca do tempo perdido, de Proust, ou ainda Os Thibault, de Roger Martin du Gard, Nava parece se empenhar a todo tempo em não deixar nenhum canto de sua vida, de sua memória despercebido. A questão se tudo ali é “verdadeiro”, se o autor não misturou ficção e realidade é sempre levantada, afinal muitas vezes podemos pensar que muitos dados e anedotas podem ser fruto do imaginário dessa literatura. Trata-se de uma longa descrição (detalhes não faltam) de tradições mineiras, de uma história da vida privada brasileira do começo do século XX. Ali percebemos como o país se transformou rapidamente daquele Império rural para abranger novas ambições industriais e urbanas com o advento da modernidade. A história do autor de certa maneira é a história do Brasil moderno.

A narrativa de Baú de ossos é basicamente dividida em quatro partes, sendo que cada uma delas se refere a uma região geográfica, regiões do país nas quais o autor viveu (Setentrião, Caminho Novo, Paraibuna e Rio Comprido). Apesar disso, não se engane: os acontecimentos não se dão de forma linear, mas sim quase como na ordem em que Nava lembra dos fatos. Por exemplo, ao tratar da família de seu pai, de origem italiana, em “Setentrião”, o narrador faz constantes associações a lembranças posteriores de sua vida ou até mesmo a conhecimentos que certamente só adquiriu na idade adulta. Ao contrário do narrador de Um retrato do artista quando jovem, de James Joyce, o Nava narrador não faz questão de se deslocar para sua infância ficcionalmente, mantendo-se sempre na primeira pessoa, como a figura conhecida na época da publicação da obra.

Todo esse mundo que veio das memórias de Nava nos é oferecido por uma linguagem multifacetada, digna de sua formação literária e intelectual entre os clássicos e os modernos. O autor sempre foi muito próximo de figuras importantes de nosso Modernismo, como Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, com os quais sempre trocou cartas. Ainda assim, percebemos em Baú de ossos uma linguagem que vai além da moderna, uma espécie de “organização literária”, ideia posta por Davi Arrigucci Jr. em posfácio para a edição da Companhia das Letras. Há tanto o registro oral, próximo das famílias do interior de Minas Gerais, quanto termos eruditos ou até mesmo técnicos da medicina, devido à profissão de Nava.

Pessoalmente devo dizer que me arrisquei ao pegar Nava para ler. Narrativas de memórias nem sempre me cativam durante a leitura, porém Baú de ossos parece nos oferecer muito além de um simples relato de experiências pessoais, como nas tradicionais autobiografias. Temos uma busca pelo tempo perdido, como em Proust, mas também uma tentativa de construção de uma consciência individual e coletiva ao mesmo tempo. Talvez o autor estivesse em sua velhice fugindo do que acabou sendo seu final, o suicídio em 1984 em uma idade tardia, aos 81 anos. As lembranças presentes em Baú de ossos fazem parte de seu passado, mas são “ossos” enterrados que continuam em nossa terra, como base daquilo que construímos. A pequena Juiz de Fora da infância de Nava continua sendo uma miniatura do Brasil em todas suas contradições.