Cada leitor tem suas próprias manias quando o assunto é leitura e livros, não sendo eu, portanto, uma exceção: confesso que me dá um nervoso quando demoro demais para ler um livro.

É claro que levo em consideração a espessura do volume e a própria construção da escritura – fatores determinantes para o ritmo da leitura –, mas ainda assim, se demoro mais do que uma ou no máximo duas semanas para ler um livro de 300 a 350 páginas, já começo a ficar incomodado com a coisa toda. Me parece que se quebra uma espécie de elo espiritual com o continuum que é a história, pois intervêm muitos acontecimentos “reais” entre os eventos “ficcionais” que constituem a narrativa, fazendo com que aquela unidade com a qual ela foi pensada seja enfraquecida.

Isso faz parte daquele processo existencial que decreta que os sujeitos mudam conforme passam pelas experiências que, no seu conjunto, formam aquilo que chamamos de vida. O resultado é que aquele leitor que eu era no início do livro já passou por experiências suficientes para tê-lo feito enxergar as coisas de outro modo, o que acarreta uma espécie de minirruptura com diversos fatores, dentre os quais se encontra o tal elo espiritual ao qual aludi no parágrafo anterior. Espero que essa explicitação não seja tão óbvia nem tão confusa a ponto de fazê-los desistir da leitura deste texto.

O motivo que me levou a essa nota introdutória pessoal – além deste costume do qual já sou cativo há algum tempo – é tentar colocar o leitor a par do estado de espírito em que me encontrava quando da leitura do livro Artemis Fowl e o último guardião, o último volume da saga do garoto prodígio do crime, criado pelo irlandês Eoin Colfer. Espero que esse procedimento de expor as entranhas subjetivas da análise acautele o leitor quanto às fronteiras daquilo que se pode chamar de olhar crítico e daquilo que convencionamos chamar aqui de nota pessoal.

Depois desse longo vade retro, é preciso dizer que a história de Artemis Fowl não foi concebida de início como uma saga constituída de oito livros. Os volumes foram se sucedendo na medida em que Colfer julgou possível e plausível expandir o universo, e, claro, conforme o público manifestava interesse pelas aventuras. O problema que esse procedimento acarreta é aquele que diz respeito ao possível artificialismo com que as novas histórias vão sendo impregnadas, uma vez que a base inicial continua sendo a mesma e as novas histórias vão sendo apoiadas nela.

Neste livro, encontramos Artemis Fowl ainda lidando com os contratempos do complexo de Atlântida e, em meio a sessões psiquiátricas no subterrâneo, se deparando com aquela que vem a ser a situação que desencadeia a trama: um novo plano maligno de Opala Koboi. Dessa vez a duende diabrete usa seu clone para construir uma elaborada fuga da prisão onde se encontra. O objetivo maior, no entanto, não é a fuga, e sim aquilo que ela possibilitará: a liberdade de movimentação que Opala precisa para abrir o portal que guarda o espírito dos Furiosos, antigos guerreiros que foram aprisionados por preconizarem a tomada do planeta pelo Povo – isto é, a eliminação do povo da lama, os humanos.

Da mesma maneira como ocorre com os demais livros, são Artemis, Butler, Holly, Potrus e Palha aqueles que irão se colocar entre Opala e seus intentos. E daí em diante, Colfer sabe pontuar a história com ação, enrascadas, saídas espetaculares e planos mirabolantes. Para cada aparente beco sem saída, Colfer encontra uma forma de desatar os nós e fazer com que a trama seja repleta de ação, sempre com tiradas irônicas e diálogos sarcásticos, mesmo nas horas em que os personagens se encontram nas mais difíceis situações.

Porém, em se tratando do oitavo livro dentro de um mesmo universo, as marcas do tempo e os rangidos da elasticidade criativa já se fazem ver e ouvir ao longo da história. Em Artemis Fowl e o último guardião já não há mais aquelas reelaborações subversivas de personagens tradicionais dos contos de fadas, que Colfer sabe fazer tão bem. Há muito menos do velho Artemis, do qual todos aprendemos a gostar tanto desde o primeiro livro. Ainda que essa mudança seja parte do longo processo em que Artemis deixa de ser um egocêntrico maquiavélico para se tornar um herói pronto a se sacrificar por uma boa causa, a agudeza mental de seus estratagemas parece ter perdido boa parte de seu antigo brilho.

Além desses, temos outros exemplos. Uma vez que a história dos Furiosos e dos portais que prendem seus espíritos não foi mencionada nos livros anteriores, e uma vez que são poderes com envergadura o suficiente para não ser possível ignorá-los, se força a coerência interna do engenhoso universo de Artemis Fowl. Logo, as aventuras soam artificiais em alguns momentos, fato que ocorre também em alguns dos livros anteriores. O detalhe é que os conflitos e situações-limite que põem a história em movimento são decorrentes justamente destes novos elementos.

E eis delineado o dilema com o qual se batem Eoin Colfer e Artemis Fowl. Há a necessidade de inovação com a inserção de novos elementos – os quais sustentam parte importante da trama –, mas há também o acabrunhamento da base inicial do universo, forçando sua coerência.

Considerando tudo isto é que uma resenha de Artemis Fowl e o último guardião tem de ser feita. E tomei a liberdade de adicionar, ainda, aquela nota pessoal do início do texto, que é a consideração de que desde a leitura do primeiro volume da saga se passaram pelo menos uns oito ou nove anos. Encarando os oito volumes como constituindo uma história só, centrada na protagonista, se passou muito tempo desde que travei meu primeiro contato com o gênio adolescente do crime, fazendo com que o Lucas_Deschain de lá – que sequer atendia por esse alcunha – é muito diferente do Lucas_Deschain de agora. E isso, conforme explicitado anteriormente, contribui negativamente no meu olhar sobre o livro.

Muito daquilo que tornou os livros de Colfer bons lá trás continua, seja a criação frenética de situações-limite, seja a visão nada ortodoxa do mundo das fadas, seja as tiradas sarcásticas e irônicas, seja a mistura bem dosada que ele faz com ficção científica e fantasia. Porém, com o fantasma histórico de sete livros a assombrar-lhe constantemente, limitando-lhe os passos e fazendo-o olhar por cima do ombro o tempo todo, esse volume de fechamento perdeu muito da força de outrora. A simples recorrência de estratégias narrativas e de trejeitos de alguns personagens contribui para que a peça final perca seu brilho.

Fiz questão de indicar as cicatrizes pessoais dessa resenha para que aqueles que a lerem possam cotejá-la dentro das entranhas de sua feitura. E que não joguem fora o bebê junto com a água do banho, pois embora os últimos volumes da saga tenham, a meu ver, um acento negativo, continuo tendo a saga como uma ótima indicação de leitura.