A discussão é antiga. As conclusões, várias. Quem sabe até casamentos já foram desfeitos por conta dessa celeuma, nações se bateram, centenas e milhares morreram por defenderem suas posições. Sei que é exagero, mas de tão debatida, e de tanto tempo passado sem uma conclusão no mínimo consensual, a questão ainda não morreu e, quem sabe, jamais o fará. Trata-se da dúvida entre quem nasceu de quem: a arte ou a vida. A arte imita a vida ou a vida imita a arte?

A resposta sempre tendeu para o lado que preteria a ficção e elegia o real como (p)referência. Ou seja, a arte (a ficção) tramava-se como representação, imitação, cópia da realidade. Platão referiu-se a uma suposta conversa de Sócrates com seu discípulo Fedro, na qual afirmava ser a escrita um phármakon (palavra grega que, dependendo do contexto, pode significar tanto remédio quanto veneno) para a memória e para a instrução. Já na sua “República”, o mesmo Platão desmerece a ficção que, para ele, grosso modo seria uma tentativa de cópia de algo e que, como qualquer cópia, perde em relação a seu original mais imediato. Compliquei, eu sei. Tudo isso para dizer que Platão instaurou na nossa cultura (ocidental) a noção de que tudo o que é ficcional é hierarquicamente inferior ao (seu referente) real. Resumindo? A ficção é inferior à realidade.

Dessa conclusão falsa saíram outras, muitas das quais bem mais poderosas em crueldade e vandalismo intelectual. A que relaciona a atividade de um artista à vagabundagem, por exemplo. Ou a ilustrada na frase “além de músico você trabalha em quê?”. O resultado da enorme influência do pensamento de Platão na nossa cultura foi uma desvalorização de tudo o que pode ser designado como “arte”, além da ideia de que o real gera a ficção, ou de que esta última necessariamente nasce do real.

É óbvio que estou do lado dos que afirmam o contrário disso. Lembro um texto do Umberto Eco que li há pouco que questiona a serventia desse bem imaterial que é a literatura. Serve para alguma coisa? Prefiro responder que não, pelo menos a princípio. No me gustam as ideias que tentam tratar a literatura como elemento transformador de uma realidade. Contudo, Eco traz três pontos que fazem a festa dos que defendem a ficção.

O primeiro afirma que a literatura mantém a língua como patrimônio coletivo. Por exemplo, sem Camões e seu “Os Lusíadas” teríamos o mesmo português que temos hoje? Sem Dante haveria um italiano unificado? Neste particular, claro, a língua teria sido cristalizada por algumas de suas obras (ficções, poemas, épicos) fundamentais. O segundo ponto deriva do primeiro: se a literatura contribui para a formação da língua, necessariamente cria as noções de identidade e comunidade, fundamentais para a ideia de pátria e para a consolidação dos Estados Nacionais (já lemos isso em História). O terceiro é o segundo em negativo: a prática da literatura exercita uma língua individual, uma forma de comunicação escrita que é diferente da do meu vizinho, por exemplo, e que me distingue dele. As linguagens neotelegráficas usadas nos MSN pelos adolescentes poderiam ir na direção de uma língua dentro da língua, por mais que alguns puristas entortem o nariz para a sua existência e digam que aquilo se trata de mera distorção do português dos catedráticos.

Engraçado. Esses mesmos jovens que exercitam esta forma estranha de escrita, ainda não pertencente a nenhuma gramática formal, são os mesmos que vêm lotando livrarias à procura de livros que espelhem seu modo de ver o mundo. São os mesmos jovens que levam livros como “Melancia”, por exemplo, ao topo dos mais vendidos do mês. Algo errado com isso? Evidente que não. Pelo menos não são esses jovens que incendeiam mendigos ou agridem gays sob os viadutos de nossas grandes cidades, pois tiveram acesso ao universo da literatura, aos livros. Ou aos “lugares onde, através da educação e da discussão, poderiam chegar até eles os ecos de um mundo de valores que chega de e remete a livros”. Grande Eco. O Umberto.

A ficção? Acho sim que ela fundou uma das realidades mais importantes de nossa vida, que é a língua que falamos. É a partir da língua que falamos que nos movemos no mundo, que amamos e odiamos, que trocamos cartas, ideias e dores. É por causa dela que somos um dos únicos povos do mundo que tem a palavra “saudade” traduzindo um conceito que outras línguas levam algumas orações para bem definir. A ficção não só ajudou a cristalizar a minha língua, mas vem ajudando a mantê-la viva, mutante. Minha língua X-Men aos poucos vai aceitando o que vem daqueles que a falam e sobretudo daqueles que a (re)escrevem. É isso que torna uma língua bela: sua capacidade de negar-se, reconstruindo-se.

Muito semelhante ao que acontece na prática literária, na leitura de um bom livro. Pois o bom livro não é aquele que apenas afirma verdades, mas o que suscita perguntas, que nos tira da poltrona, que nos arrebata, nos joga na parede e desfaz nossas certezas.

Sobre o autor: João Luiz Peçanha Couto é professor e jornalista. Escreve semanalmente para o jornal Gente e Empresas a coluna “Espaço Literário”.