Ah, o amor e a tecnologia.

Eis um par que dá pano para manga. Ele, um tema atemporal – pois quem poderá conter-se, tendo um coração que ama e, no mesmo, coragem de tornar esse amor conhecido1? Ela, modificando como encaramos o próprio tempo – e nossa inteligência e como nos sentimos confortáveis no mundo. Características, aliás, não exclusivas dela. O amor também muda isso tudo: ficamos mais à vontade, mais bestas e quem há de negar que Einstein tinha razão? O tempo que passamos com nosso amor passa mesmo bem mais rápido.

Ele e ela são temas correntes em algumas obras que citarei a seguir, usando outros eles e elas.

gata+pidão
A gata da literatura e o olhar pidão

Uma guria no Twitter e um olhar pidão na orelha do livro

Não era como se eu precisasse ser convencido a assistir a Ela, novo filme de Spike Jonze, ou a ler Uma teoria provisória do amor, primeiro romance de Scott Hutchins: vi o trailer e gostei, além de recordar com um sorriso os outros filmes do diretor; li a sinopse e gostei, além dela ter me lembrado de outro livro com uma história parecida, uma boa leitura.

Mas é sempre bom um empurrãozinho, só para destacar um filme entre todos os que baixamos no último mês ou um livro no meio de tantos com a lombada azul.

Foi basicamente isto que a Taize fez no Twitter. Ela comentou o quanto tinha gostado do filme, com eloquência semelhante à minha nesse tipo de situação: “<3”. E falou um pouco do quanto é legal um casal de ex-namorados se darem bem ao ponto de ela escrever uma música essencial para a película dirigida por ele – Karen O e Spike Jonze, respectivamente.

Vi o filme pouco depois.

karenspike
Karen O e Spike Jonze: ex-namorados do bem

No meio das anotações que fiz enquanto o via (“seriado inglês”; “samantha/elgie”; “adeus por enquanto”; “improv everywhere”; “ruby sparks”), encontrei o título de um livro que tinha esquecido na escrivaninha há alguns meses: “uma teoria provisória do amor”. Quando o peguei, decidi que valia a pena reiniciar a leitura – ainda estava na página 50. A decisão final foi tomada quando vi a foto do autor na orelha do livro, como se implorando “me leia pfvr”.

Li o livro pouco depois.

Sobre Ela, sobre ele

Em Ela, Theodore Twombly é um ghostwriter de cartas de amor – uma profissão de verdade, sobre a qual fiquei sabendo mais pelo artigo de Bonnie Downing – e um indivíduo solitário. Ele tem uma amiga e uma ex-mulher (e meio que não assina os papéis do divórcio para não perdê-la), mas é um indivíduo solitário. Ele tem videogame (bastante interativo), chat noturno (“Me sufoque com o rabo do gato morto ao pé da cama! Oh, yeah, baby!”) e novas fotos eróticas de uma celebridade grávida. Ele pode estar bem – estar sozinho não é ruim per se –, mas parece meio deprimido. Com saudade da ex, no mínimo.

downingjonze
Bonnie Downing e Spike Jonze: ghostwriters de cartas de amor

Isso até conhecer Samantha, aquela que será sua nova namorada. Ela é um SO – sistema operacional. Depois de poucas perguntas – “Você é antissocial? Qual a sua relação com sua mãe?” – ela já está pronta para conversar com ele. Sua inteligência artificial permite que não haja limites para o que pode aprender, o que não impede que ela se apaixone por um ser humano tão limitado, como todos somos: corpos frágeis, mente subutilizada, essas coisas.

Ela leva Theodore para passear (uma cena divertida lembrou-me dos “The Mp3 Experiments” do grupo Improv Everywhere) e compõe músicas para um momento específico – “esta música é como uma fotografia de nós dois, juntos, vendo esse pôr-do-sol”. A coisa toda parece que vai descambar pra um tropo antifeminista – “The Manic Pixie Dream Girl” – mas, de forma semelhante a Ruby Sparks – a namorada perfeita, essa sensação é quebrada por algumas reviravoltas do roteiro. Pois Samantha quer mais do que isso.

E “mais do que isso” seria dar spoilers. Deixemos Ela por um instante e passemos a falar dele, o romance de Scott Hutchins.

Neil Bassett Jr., o protagonista deste, trabalha num projeto tecnológico que objetiva vencer

o teste de Turing, o marco zero dos problemas da inteligência artificial. Para vencer esse teste, precisamos criar um programa que – trinta por cento do tempo – é capaz de iludir os humanos levando-os a pensar que também ele é humano. O programa que ultrapassar esse limiar será considerado o primeiro computador inteligente.

 

“Que legal, Tuca! Então acompanhamos a vida de um gênio da informática que…” e eu já interrompo a sua empolgação por aí, pois não é bem isso. Neil é um sujeito normal, talvez até meio parecido com o Theodore do filme, que foi no máximo redator de publicidade; outras pessoas cuidam da parte tecnológica. Sua importância para o projeto é: ele conhecia seu próprio pai. Que se suicidou. E deixou uma (pesquisar expressões que não sejam de baixo calão… ah, já sei!) “montanha” de diários que serviriam de base linguística para o programa, um sistema operacional, o “Dr. Bassett 2.0”. Pois os diários são contemporâneos e abrangentes o suficiente e têm linguagem acessível o suficiente. Ou seja: Neil só importa por sua capacidade de perceber se a máquina soa (o suficiente!) como seu pai. Síndrome de Júnior.

Mas não são apenas as habilidades de redação que assemelham Neil e Theodore. Neil também é solteiro, tem uma ex-mulher, tem uma “amiga”. E o livro, assim como o filme, também pode ser lido como uma história de amor – pô, tá até no título, não vá me dizer que não desconfiava disso. É como se, durante a leitura de Uma teoria provisória do amor, acompanhássemos os primeiros passos da tecnologia que permitirá a existência de Samantha, no futuro de Ela. Quando lemos “Nenhuma máquina até hoje buscou conhecimento. Nenhuma tem conhecimento que ela deseje saber”, imediatamente pensamos: Samantha sabe, Samantha deseja.

her poster

Sobre nós

Tanto o filme quanto o livro, mais do que a respeito de seus protagonistas, são sobre relações. Nós.

Nos debates relacionados ao Dr. Bassett 2.0, dois conceitos se destacam: o operacionalismo em que se baseia o projeto (“Meu chefe, Henry Livorno, sempre insiste que não há diferença empírica entre parecer e ser. (…) é também uma sólida sabedoria para esta noite. Se eu puder fazer as coisas parecerem divertidas, elas o serão.”) e uma teoria provisória do amor (“Uma mistura de satisfação de necessidade e projeção.”).

De um lado, uma empresa concorrente, de um cara chamado Toler, que já pensa no futuro:

 

“(…) Vamos precisar de 3-D, de interação. O próximo passo – isso daqui a cinco anos, talvez dez – são relacionamentos românticos com robôs. Nossos desejos e necessidades sendo satisfeitos por eles. Não me olhe desse jeito. Será melhor do que qualquer relacionamento que a gente já teve. O relacionamento ideal. A comida pronta, a coçada nas costas, a escuta paciente, o sexo. Tudo na hora certa. E não vai se importar se você escovou os dentes ou não. Você não vai ter que malhar na academia. Elas não vão trair a gente com o rapaz ou a garota da piscina. Vai ser uma mudança radical no mercado.”

 

Do outro, um grupo chamado Encontros Puros, absolutamente contra qualquer uso de tecnologia nas relações amorosas. Sexo por telefone? Proibido! Há vários níveis de aprendizado – seminários e retiros – a fim de que se entenda totalmente a filosofia por trás da coisa:

 

Pela descrição de Jenn, dá a impressão de ser o cruzamento entre uma aula Lamaze de parto normal e uma orgia. Homens e mulheres se juntam como íntimos para uma sessão, e o homem dedilha a mulher por uma hora ou mais, sob a supervisão de um sexpert. Não consigo imaginar o que torna puros esses encontros. Eles não parecem sequer estáveis psicologicamente.

 

(Um parêntese: a voz do protagonista, seu humor sarcástico, se assemelha à do narrador de Ser feliz, de Will Ferguson – romance do qual aparentemente todo mundo só ouviu falar por conta da coluna “O preparador, esse desconhecido”, escrita por Vanessa Barbara. Uma frase como “E será que eu posso mesmo me chamar de um legítimo cidadão de San Francisco sem nunca ter participado de um retiro?”, de Hutchins, poderia ter saído da boca de ambos os personagens.)

O romance nos apresenta extremos e nos deixa bem no meio, para que cheguemos a conclusões próprias. É mais racional, de certa forma: o personagem se compromete, mas nos deixa livres para julgarmos.

mariawill
Maria Semple e Will Ferguson

O filme, por sua vez, é mais emotivo. Parece rir da previsão de Toler: apesar de ser ambientando no futuro – um futuro meio distante, em que o equivalente ao saudosismo expresso nos filtros do Instagram se encontra nas cartas de amor “manuscritas” por um ghostwriter e na presença de algumas pessoas que “ainda publicam livros” (aqueles também chamado de livros “de verdade”, os livros físicos) – a existência de um sistema operacional que se relaciona afetivamente com humanos ainda é uma novidade.

Uma novidade que logo deixa de ser: da mesma forma que não julgam relacionamentos inter-raciais e homoafetivos, as pessoas parecem não ligar se a sua namorada é um sistema operacional:

 

Qualquer pessoa que se apaixone é uma aberração. É algo louco de se fazer. Uma forma socialmente aceitável de insanidade.

 

Digo, quase todas as pessoas parecem não ligar se a sua namorada é um SO. O diálogo a seguir se dá entre o protagonista e Amy, sua amiga:

 

– Catherine disse que não consigo lidar com emoções reais.
– Não sei se isso é justo. Eu sei que ela gosta de culpar você por tudo, mas, no que diz respeito a emoções, Catherine era bem volátil.
– Estou nisso… porque não sou forte para um relacionamento real?
– Não é um relacionamento real?
– Eu não sei. O que você acha?
– Eu não sei. Não estou nele. Mas, quer saber? Posso ser aquela que pensa minuciosamente sobre tudo e sempre descobre novas maneiras de duvidar de si mesma. E, desde que Charlie foi embora, tenho pensado nesse meu lado e cheguei à conclusão de que só estamos aqui por um momento. E, enquanto estiver aqui, vou me permitir ser feliz. Então, foda-se.

 

(Outro parêntese: não é só a presença do nome Samantha dado a um programa de computador que me fez lembrar de Cadê você, Bernadette?. A personagem de Amy Adams, que também se chama Amy e é uma das melhores coisas do filme, lembrou-me da personagem cujo nome está no título do romance de Maria Semple. Alguém que se dá conta de sua necessidade de usar a criatividade, sem que alguém a tolha – e que também tem um SO, alguém virtual com quem conversar. Inclusive foi certo grito de Bee, filha de Bernadette no romance 2, que me levou a prestar atenção em alguns detalhes do filme, sobre os quais falarei após fechar esse parêntese.)

Pronto. Enquanto o romance de Hutchins nos deixa no meio de dois extremos explicitamente transcritos, numa busca dos personagens que pode levar à Singularidade (“se refere ao momento em que iremos transferir nossas personalidades de corpos degradáveis e perecíveis para chips eternos e imutáveis de computador, e assim viver para sempre – sob que forma, ninguém diz.”), o filme de Spike Jonze no coloca entre duas alternativas sutilmente apresentadas: a nossa relutância (preconceito talvez seja uma palavra melhor) em acreditar que esse tipo de relação possa ser considerada “real” – vide questionamento de Theodore, no diálogo com Amy; e a sofalarity, na falta de tradução – juro que procurei! Segundo o artigo de Tim Wu para a New Yorker, esta seria caracterizada por “um futuro definido, não pela evolução direcionada à superinteligência, mas pela ausência de desconforto”. Basta se lembrar de Wall-E.

Eu não vim propor uma resposta. Há quem diga que o amor não está no app: “esse tal de Tinder (ou outro aplicativo da moda) é muito legal e tal, mas se fosse por ele eu nunca teria encontrado o (insira aqui o nome do namorado dela)”. E você concorda, porque nunca teria dado um match entre aqueles dois, tão perfeitos juntos. Mas aí descobre uma história de amor bonita que começou num aplicativo e percebe que tudo continua igual: as pessoas são diferentes, os casos são diferentes. Talvez cheguemos à mesma conclusão – como os personagens de Ela – quando houver sistemas operacionais na jogada. Quem sabe?

O que eu vim propor foi: perguntas. Mas não só, pois nem isso você precisa levar a sério, que esse negócio de ter de opinar sobre tudo já está a começando a dar nos nervos.

Porque eu também vim propor: boas histórias. E, bah, isso descreve muito bem esse combo “livro + filme”. Se você gostou de um, as chances de também gostar do outro são imensas.

* * *

adeusteoria

Mais três livros interessantes, para quem gostou de alguns pontos da discussão:

* Adeus, por enquanto, de Laurie Frankel (livro com premissa bastante semelhante à de Uma teoria provisória do amor);

* Cadê você, Bernadette?, de Maria Semple; e

Ser feliz, de Will Ferguson.

bernadette feliz

  1. That’s Shakespeare, bitch! Macbeth, para ser específico, tal como na tradução da legenda – ou seria da dublagem? – de Dez coisas que odeio em você, filme inspirado em ainda mais Shakespeare (A megera domada, por sua vez).
  2. “‘Qual foi o grande crime que a mamãe cometeu, afinal de contas?’, eu gritei. ‘Foi ter uma assistente na Índia que fazia tudo por ela? E o que é Samantha 2? Só serve para que as pessoas fiquem o tempo todo sem fazer nada enquanto um robô faz tudo por elas.’”