Entre os nomes que mais se destacam na cenário da historiografia contemporânea certamente poder-se-ia incluir o historiador italiano Carlo Ginzburg. E as razões que justificariam esse destaque estão, boa parte delas, ligadas a sua empreitada mais célebre, O queijo e os vermes, livro no qual ele investiga a vida do moleiro Menocchio através dos registros processuais de seu julgamento pela Santa Inquisição.
A produção de Ginzburg existe, em grande parte, sob a sombra daquilo que O queijo e os vermes processou, não necessariamente pela mesma linha interpretativa, mas pela sensibilidade com que sua visão histórica vem se desdobrando desde lá.
É por conta dessa evolução, potencializada pela ampliação do leque de referências eruditas do historiador, que a leitura de Medo, reverência, terror se anuncia como uma obra de leitura densa embora instigante, um livro de fôlego e que exige fôlego, apesar de sua brevidade. Basta que se leia qualquer uma de suas outras – várias – obras para que se tenha uma bela amostragem disso.
Conforme anuncia o subtítulo, Medo, reverência, terror é um livro formado por ensaios que investigam a iconografia política. Ginzburg o escreveu interessado em compreender diferentes obras de arte em sua ligação com a política de seu tempo e de seus autores, constituindo-se elas, portanto, objetos com sentidos que vão além de sua apresentação temática imediata.
Ginzburg se propõe a discutir a maneira como determinadas expressões corporais, determinados gestuais e utilizações formais e estéticas para a construção de imagens causam no leitor um conjunto de reações. Partindo de um conceito do historiador alemão da arte Aby Warburg, o Pathosformeln (“fórmula das emoções”), Ginzburg pretende compreender como essas reações estão ligadas à política e a vida social dentro do contexto de construção e recepção da arte.
Essa investigação ancora-se nos pressupostos de que a arte é histórica e dotada de marcas indeléveis das circunstâncias nas quais foi produzida. Isso significa que as análises que tomam lugar em Medo, reverência, terror concebem os artistas como sujeitos históricos cuja existência em determinados conjuntos de relações tiveram influência essencial na maneira como eles concebiam seu ofício de artistas e como elaboravam suas criações.
Para dar corpo empírico a esse conjunto de pressupostos teóricos, Ginzburg se debruça sobre algumas pinturas, gravuras e ilustrações, de diferentes tempos, autores e sociedades.
O primeiro dos quatro ensaios se detém sobre o frontispício de um dos mais seminais tratados sobre a política moderna, O Leviatã, de Thomas Hobbes. À luz da análise dos pressupostos que guiaram as colocações de Hobbes, especialmente aquele que postula que deve haver uma carga de medo nos homens para que eles se sujeitem e possam ser governados por um Estado, Ginzburg busca entender a gigantesca figura presente na frente da obra. É um homem gigante, com o corpo formado pelos rostos de diversas pessoas, que observa a todos com o cetro e a espada na mão. Se trata da criatura que deve incutir o medo e a sujeição nos homens para que seu governo possa ser estabelecido.
A investigação da famosa pintura Marat em seu último suspiro, de Jacques-Louis David, mostra como ele teceu suas referências em torno de uma determinada tradição cristã em que a maneira como o corpo de Marat se apresenta na tela carrega simbólicas semelhanças com figuras de Cristo e de outros personagens sacros. Tudo isso tendo sido processado dentro das profundas transformações em curso ao longo da Revolução Francesa.
Analisando os cartazes de incentivo ao recrutamento produzidos em vários momentos do século XX, Ginzburg recua no tempo e encontra inúmeros pontos de referência com pinturas de outras épocas que utilizavam-se do escorço da figura presente no cartaz para criar determinadas sensações no espectador. Por isso é que Lorde Kitchener com o dedo em riste, apontando para o espectador, causou desconforto suficiente para ser lembrado em várias memórias, e eficácia o suficiente para ser utilizado diversas outras vezes em diversos outros contextos.
O último ensaio é dedicado a entender como a obra Guernica, de Picasso, hauriu de certas fontes artísticas e culturais longínquas suas maneiras de expressar determinados sentimentos, especial-mente o terror e o desespero. Ginzburg localiza a pintura de Picasso dentro do que foram os tempos pré-Segunda Guerra Mundial, embrenhados na Guerra Civil Espanhola e a ascensão dos fascismos europeus. A política que já foi tantas vezes e de tantas formas abordada encontra uma nova expressão, que se insinua nos elementos mais aparentemente inexpressivos da pintura, uma espada quebrada e uma lâmpada.
Com sensibilidade e erudição, Ginzburg consegue penetrar nos fios mais elementares da realidade e colher aquelas cargas de significação mais miúdas, justamente aquelas que, apesar de sua pequenez, transmutam nossa visão sobre o todo.