Dando continuidade, pois, à lista de indicações de leitura iniciada ontem, vem a segunda parte dela. Aproveita-se, nesse sentido, não somente para fracionar uma lista longa em duas partes, mas o timing do golpe, o qual é tratado por alguns como tendo sido concretizado no dia 31 de março e por outros como tendo sido levado a cabo no dia 1º de abril. Mais cinco sugestões de leitura, então:

O.que.e.isso.companheiro.Fernando.GabeiraO que é isso, companheiro? (Fernando Gabeira) – Trata-se de um livro controverso, definitivamente. Não somente porque mostra certas facetas da esquerda de uma forma sardônica, mas também porque fala do célebre sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick e de certos dilemas da repressão. A história posterior da vida de Gabeira contribuiu para que seu livro fosse lido por um viés bastante diferente daquele com o qual era lido outrora, diante de suas posições políticas no passado. Ainda assim, enxergado como documento histórico e de cunho pessoal, ele encerra impressões, descrições e visões de grande valor para se entender as dinâmicas repressivas por parte do governo, mas também algumas das estratégias e do cotidiano dos opositores do regime militar.

Um.copo.de.colera.Raduan.NassarUm copo de cólera (Raduan Nassar) – Embora haja quem possa questionar a adição deste livro à lista, ainda assim a sustento. A associação entre os personagens do livro e situações factuais da ditadura é sutil a ponto de ser questionável, mas a metáfora do copo de cólera – entornado de uma vez – é de um acerto plástico impressionante quando pensada em relação aos famosos “anos de chumbo” que se aprofundaram após o AI-5, em 1968. Assim como a microrrelação apresentada no livro de Nassar é subitamente transformada num caldeirão de vitupérios e acusações, a vida nacional foi tomada de cólera, uma cólera que se materializava no aparato repressivo, nos sistemas de espionagem, na organização institucional do governo e no medo disseminado pelos rincões mais obscuros do cotidiano. O livro de Nassar é, para mim, uma das mais poderosas leituras literárias do sombrio zeitgeist daqueles anos.

Guerrilha.urbana.Cunha.de.LeiradellaGuerrilha urbana (Cunha de Leiradella) – Assim como Guido Guerra, Leiradella não se encontra no hall dos mais conhecidos escritores brasileiros. Isso não impede, no entanto, que suas obras guardem interessantes histórias. Apesar do título sugerir uma trama centrada no conflito armado urbano, similar às guerrilhas organizadas pelos diversos movimentos de luta armada, o livro de Leiradella trata de outros enfrentamentos. O corpo da obra é formado pelas histórias de vários personagens que levam uma vida comum. Mas precisamente nessa vida comum vão surgindo pequenos focos de significação histórica a respeito do período, pois as micro-histórias expõem como a moralidade conservadora estrita, preconizada pelo governo, acabava por gerar uma incorporação individual restritiva que precisava transbordar-se em certas válvulas de escape, em especial a sexualidade. O detalhe é que a sexualidade velada necessita da hipocrisia que a acoberte. Boa parte do livro decorre em encontros furtivos, em traições disfarçadas, e em relações carnais picantes, acompanhadas de um esforço crescente para preservar uma imagem pública casta e reta. Trata-se de uma guerrilha moral, cujo foquismo Leiradella recria literariamente por meio das microssituações desdobrando-se num conflito generalizado, mas ainda assim cuidadosamente escondido.

A.festa.Ivan.AngeloA festa (Ivan Ângelo) – Ivan Ângelo é outro escritor brasileiro menos conhecido do assim chamado “grande público”, mas que tem em A festa uma obra digna de releituras. Trata-se de um livro de construção nada ortodoxa e que, por essa mesma estrutura, mostra-se enigmático. Várias histórias e personagens vão sendo apresentados, e aos poucos a ligação entre eles vai se fazendo. Um dos pontos centrais é a trajetória de um grupo de retirantes nordestinos que chega em Belo Horizonte, e que tem em Marcionílio dos Santos uma de suas figuras mais emblemáticas. Isso e a tal festa aludida no título do livro constituem pontos-chave da trama. Os diversos personagens têm diferentes implicações com o governo ditatorial: há o jovem perseguido que havia se vinculado ao movimento estudantil, a mulher que teve seu esposo preso e sofre chantagem das autoridades, há o escritor que se debate entre escrever engajadamente e sofrer as consequências da censura e repressão etc. É um livro rico e que tem uma estrutura curiosa: ao final da obra, em páginas azuis, há um índice remissivo dos personagens, explicando o destino que tomaram e como as situações obscuras de outrora se desdobraram “posteriormente”. Certamente se trata de um recurso literário que vai além de um puro e simples esclarecimento.

Os.carbonarios.Alfredo.SirkisOs carbonários (Alfredo Sirkis) – Mais um dos livros que retiram sua força mais da imposição factual das situações narradas do que propriamente de seus méritos estéticos. Sirkis, assim como Gabeira, viveu na pele as incertezas da oposição e da luta armada, e, assim como Gabeira, também tem sua obra julgada através de suas posições políticas posteriores. No livro em questão, o leitor acompanha a trajetória de Sirkis e vai compreendendo, ao longo das diversas situações que corporificam a obra, como a política apresentava-se como algo muito distinto nos anos 60 e 70, e como estava infiltrada nos lugares mais comuns da vida prática, constituindo-se empírica e teoricamente como uma questão da maior urgência. As perspectivas do movimento estudantil, as incursões no campo do marxismo, a guerrilha, as passeatas, o conservadorismo reacionário etc., o relato de Sirkis congrega-os todos numa narrativa simples e direta.