Sabe quando você termina de ler um livro e não sabe bem dizer se gostou ou não? Algumas partes são legais, ótimas, incríveis! – enquanto outras te deixam meio incomodada? Então, foi assim que fiquei em relação a Herland – A terra das mulheres, de Charlotte Perkins Gilman, mesma autora de O papel de parede amarelo

Publicado em folhetim em 1915 e em livro somente em 1979, Herland é um relato de viagem fictício. Depois de participarem de uma grande expedição e ouvirem lendas de um suposto país onde só havia mulheres, três jovens exploradores buscam – e encontram – o território sozinhos, isolado geograficamente no topo de um desfiladeiro de montanhas.

Como é comum nesse gênero literário, o livro é composto muito mais de descrições que inevitavelmente comparam o país das mulheres com o país de origem dos rapazes, os EUA (o mesmo de Gilman). O texto antecipa constantemente que a experiência não podia ser mais diferente do que esperavam: no lugar de um país governado pela emoção, repleto de ciúmes e problemas, encontram um país organizado, sério e produtivo. Ou uma utopia, nos olhos de Gilman. 

O final do livro adquire um tom mais narrativo enquanto acompanhamos as relações desenvolvidas entre os exploradores e algumas das mulheres, além da maneira com que conseguem – ou não – se encaixar na nova sociedade. 

A parte que faz meus olhos brilharem é a maneira (magistral) com que Gilman faz críticas à sua própria sociedade, principalmente nas comparações entre os países. Ao se depararem com a realidade descrita pelos exploradores, as mulheres de Herland fazem inúmeras perguntas: como é possível que metade da população adulta não trabalhe? É possível produzir assim tudo que a sociedade precisa para viver? A autora critica o modelo patriarcal, o sistema econômico capitalista, o machismo, a guerra. Publicado no começo da Primeira Guerra Mundial, o livro mostra um questionamento que só aumentaria a partir de então. E faz isso com um dos gêneros mais populares do XIX e começo do XX. Palmas para Gilman. 

Mas vamos para a outra parte. Duas coisas me incomodam mais no livro. A primeira é uma insistência na formação de um estereótipo do que seria a mulher ideal: forte fisicamente, inteligente e mãe. Herland é o país da maternidade, já que suas mulheres teriam desenvolvido naturalmente uma maneira de engravidar sem ter relações sexuais. Todas as mulheres são mães, e esse é o valor central da sociedade em que vivem – aborto, portanto, nem pensar. Talvez o estereótipo seja diferente daquele da mulher burguesa do pré-guerra, e talvez mais saudável que ele. É inegável, porém, que há uma transferência de valor para uma outra imagem inalcançável. 

Em segundo lugar, Gilman apresenta, na voz de seu narrador em primeira pessoa (um dos exploradores), algumas ideias eugenistas. A referência de que as mulheres derivariam da raça ariana (“…e não tenho dúvida de que aquelas pessoas eram de raça ariana, tendo mantido contato com o melhor da civilização do mundo antigo”) e um receio de entrar em contato com outros povos e macular a beleza deste povo não são mais lidos levianamente por um leitor hoje – afinal, sabemos o que aconteceu na Segunda Guerra Mundial. E é difícil, em um livro com este perfil, saber se essa era uma opinião apenas da personagem narradora (e fariam parte do livro como formação do personagem) ou se, de fato, refletem a opinião da autora de alguma forma. 

A verdade é que o preconceito e a imagem de mulher criada pela autora fazem com que a sociedade descrita no romance passe longe de ser uma utopia para os dias de hoje. E imagino que ele passe longe de ser uma utopia para muita gente, mas vá lá, estou pensando em feminismo aqui.   

Em ocasião do centenário da escrita do livro e sua consequente republicação em 2015, Linda West escreveu no The Guardian que um dos grandes motivos para ele ser lido hoje é entender o feminismo e seu processo de formação. Em 1915, não se falava de feminismo interseccional, por exemplo. West defende inclusive que esse romance pode ser visto como uma maneira de fazer uma crítica do feminismo de hoje: estamos longe disso? 

Esse livro é daquele tipo que gostamos e desgostamos ao mesmo tempo. Ou que até gostamos, mas tem umas partes meio nhé. E quanto mais leio, mais me convenço que esse tipo de obra tem sua razão de ser. Me parece que ganhamos mais lendo, debatendo e criticando do que esquecendo-o. Afinal, momentos ruins também fazem parte da história, mas ler pode nos lembrar de quem já fomos – e provavelmente não queremos voltar a ser.

FICHA TÉCNICA
Livro: Herland – A terra das mulheres
Autora: Charlotte Perkins Gilman
Tradutora: Lígia Azevedo
Editora: Via Leitura
Páginas: 160


Gisele Eberspächer é jornalista e tradutora. Vive entre livros e não sabe se gosta mais de café ou chá – então toma os dois compulsivamente. Fala sobre literatura no canal do YouTube “Vamos falar sobre livros?” desde 2012.