Quando pensamos no estereótipo da bruxaria, uma das primeiras imagens que aparece em nossas mentes é relacionada a mulheres voando pelos céus com vassouras ou se transformando em animais. Os ritos das bruxas, conhecidos como sabá, ainda são mais assustadores. Eles envolvem adoração ao demônio, orgias e até canibalismo. “Como e por que se cristalizou a imagem do sabá? Que se esconde por trás disso?” Essas duas perguntas motivam e direcionam a pesquisa do historiador italiano Carlo Ginzburg e resultaram no livro História Noturna: desvendando o sabá.

Começando por uma introdução bastante crítica e pesada, o autor discorda de como diversos historiadores, como Trevor-Roper e Keith Thomas, trataram o tema ao longo dos séculos. Sua principal crítica diz respeito ao foco que eles optaram: ao invés de colher material sobre o que pensam as pessoas que acreditam e praticam o sabá, com um apanhado mais próximo à antropologia, eles foram restritos ao movimento de inquisição e penalidade dos juízes. O objetivo de Ginzburg é combinar a forma estrutural e história do Sabá.

A primeira grande dúvida que surge, ainda na introdução, é o fato de que bruxas voando e se transformando em animais, por exemplo, são impossíveis de acontecer em um mundo real. Como seria possível, então, que, durante os séculos XV e XVII, tenham sido colhidas tantas confissões que continham esses mesmos fatos descritos? Nesse sentido, também é criticada a autora M. Murray pela obra The witch-cult in western Europe (1921). Segundo Ginzburg, a autora reúne material de diversas confissões e leva a sério o pensamento camponês, mas sugerir que essas confissões são puramente realidade e não se tratam de relatos carregados de simbolismo é um equívoco.

A estrutura mitológica da cultura popular é o grande foco da pesquisa de Ginzburg. Na primeira parte do livro, ele inicia uma análise partindo do século XIV, quando judeus e leprosos são acusados de envenenamento de poços. Segue-se o massacre de judeus, acusados por espalharem a Peste Negra. Nos relatos dos acusados, já havia a pressão por confissões sobre entidades fantasmagóricas que apareciam em seus pensamentos e sugeriam tais ameaças. Nesse período, vemos a imagem do feiticeiro solitário ser sobreposta a uma prática de bruxaria mais ampla. Se inicialmente, somente os leprosos eram acusados, o grupo aumentou para os judeus e, posteriormente, homens e mulheres que praticavam bruxaria.

O fato é que a sociedade camponesa da época vivia com medo. O destino era encarregado de atrapalhar colheitas, tirar vida de crianças e adultos por doenças, entre tantas outras coisas. O autor mostra, por exemplo, como lobisomens e bruxas são inimigos desde os primórdios, na crença popular: os dois grupos brigavam pela fertilidade dos campos. Muito interessante é notar que esses grupos eram liderados, muitas vezes, por mancos.  Em um certo momento do livro, Ginzburg se dedica a desvendar a simbologia da claudicação, que não está presente somente nesse dado estranho sobre bruxas e lobisomens, mas também em no calcanhar de Aquiles, ou nos pés da Cinderela.

Com tudo isso, o estudo do ritual do sabá feito por Ginzburg desvendou essa história “noturna”, que envolve mitos, simbolismo e medo de uma população que não poderia viver somente com o destino como explicação para tudo. Também é o resultado da coexistência e conflito entre cultura folclórica e cultura eclesiástica. Vale lembrar, por fim, que essa obra é uma retomada e aprofundamento do livro Os andarilhos do bem, que narra o surgimento dos benandanti.

Título original: STORIA NOTURNA (POCKET)
Tradução: Nilson Moulin
Preço: R$29,90
Páginas: 480

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