Se você reparar bem naquela moça, verá que é Isabel. Tudo bem, você não a reconhece, nunca a viu antes. Sendo assim, confie em mim: é Isabel. Cabelo azul, um livro em cima da caixa de compras que carrega (droga, não consegui ler a lombada!), a tatuagem do verso de Sylvia Plath num dos braços – Love, love, my season –, os tênis de corrida inseparáveis. Não há dúvidas: Bel.

Proponho segui-la. Apressa o passo que a gente consegue entrar no prédio sem acionar o interfone. Viu só? E, se brincar… Arrá! Como eu suspeitava: a porta do apartamento também tá aberta. Se a conheço bem, ela deve ter destrancado, recolhido a caixa e, depois de entrar, deu um toquinho leve demais para a porta fechar de verdade. Entremos também.

Quem diria? Não é que, agora que mora sozinha, ela resolveu ser organizada? Cada pacotinho em seu canto específico no armário da cozinha – gostei de ver. Dentro da caixa, apenas o livro: como não fui capaz de reconhecer a capa vermelha de longe?

Uma canção toca baixinho, trilha sonora para a dança de tirar o livro da caixa, abrir na página com marcador e se jogar no sofá da sala – movimentos precisos como se ensaiados. O som parece vir de um vizinho, um desses raros de bom gosto. Ela está prestes a identificar a música, dá para perceber. Um sinal de reconhecimento. Já espero que diga o nome dela – ou de quem a canta – em voz alta e mate minha curiosidade.

Mas não: ela revira almofadas até achar aquele celular velho, comprado numa época em que toques polifônicos tornavam um aparelho caro e invejável. E não é que o som vem dele? Bel olha para a telinha, para a capa do livro, para a telinha novamente, e eu não consigo dizer se ela vai atender ou não.

Entrar despercebido num apartamento é uma coisa. Entrar na mente de outra pessoa: bem mais difícil.

Não custa tentar, no entanto.

Once (2003)

Cabelo castanho e sem graça: esta também é Isabel. Em São Paulo de passagem, mas longe da Liberdade. Numa dessas cidades que precisam ser identificadas como “pertinho de Campinas”. De que adianta estar de férias em São Paulo se não se está em São Paulo?

Nada para fazer. Internet – fotolog, msn – só depois da meia-noite. O jeito é ver filme no videocassete; este é um daqueles que gostam de deixar uma ou outra cena em preto e branco. Pelo menos uma fita da coleção pessoal da avó a interessa: Todos dizem eu te amo. Ainda está muito cedo para Bel descobrir que se tornará fã de Woody Allen – aliás, ela sempre esquecerá que foi este o primeiro filme do diretor que viu e repetirá que foi Melinda & Melinda. Ela quer ver este porque tem Julia Roberts no elenco.

Dela Bel é fã. Se tivesse os cabelos ruivos e encaracolados e imensos da atriz em O casamento do meu melhor amigo, ela seria bem mais bonita. Não, talvez ela não tenha salvação. Mas mais feliz seria. Certeza: com cabelos ruivos e encaracolados e imensos, ela riria como se tivesse um bocão impossível.

Quando o filme termina, ela não sabe direito como se sentir. Não sabia que era musical, que Julia Roberts era só um detalhezinho. Na mente, Goldie Hawn ainda está cantando I’m through with love; se não fosse um saco rebobinar, teria revisto a cena 15, 27, 48 vezes – não apenas três. Woody Allen cantou a mesma canção, Natalie Portman também, mas nada supera Goldie dançando como se não houvesse gravidade.

Bel se pergunta se também está farta do amor. Ela crê que sim, mas algo lhe diz que está sendo precipitada. Talvez o alerta venha da cena em que Natalie Portman canta um pedacinho da música, chorando desesperada, mais uma adolescente patética jurando que nunca amaria novamente. Se bem que até Woody Allen parece ridículo em situação semelhante. Apenas Goldie mantém alguma dignidade ao afirmar isso – e olhe que ela flutua.

Ela deve estar mais para Natalie Portman mesmo, até pela idade. Pelo menos não está chorando. Não mais.

Twice (2005)

Cabelo ruivo, mas nada encaracolado e imenso, que isso dá muito trabalho: esta também é Isabel. Agora vive em Curitiba, com São Paulo a seis horas (e uma passagem razoavelmente barata) de distância. Enquanto se acostuma ao clima, à universidade, às pessoas, ela usufrui tanto quanto pode da biblioteca, dos cinemas, das locadoras com filmes que ela nem sabia que tinham versão em dvd.

Para a noite, ela separou uma boa coberta e um clássico de Billy Wilder, Quanto mais quente melhor. Escolheu este porque, dizem, os diálogos são bons. Outra razão para a escolha: Bel está encantada com os filmes de Marylin Monroe. Se tivesse os cabelos platinados e curtos da atriz, ela seria bem mais bonita. Não, talvez ela não tenha salvação. Mas mais misteriosa seria. Certeza: com cabelos platinados e curtos, as pessoas nunca saberiam se ela dissera algo a sério ou ironicamente.

Quando Sugar Kane canta, sofrendo por Josephine, Bel reconhece a canção. Em dois anos, quanta coisa mudou. Ela ainda admira quem consegue cantá-la de forma convicta, com dignidade, mas definitivamente não está farta do amor. Está apaixonada.

E temerosa de que o percebam – detestaria estragar sua primeira amizade verdadeira com um rapaz só por sucumbir ao estereótipo besta de que homens e mulheres não podem ser amigos. Um dia ele falou I like you like you like me. Ela tem sérias dúvidas disso. Seria uma pena estragar o começo de uma bela amizade.

Em sendo um dvd, ela pode rever a cena sem cessar. Já está prestes a decorar o modo de Marylin apertar a luva com as mãos, quase encobrindo a boca, ao dizer que só serve você e mais ninguém. Prestes: algumas marcas de dentes e saliva na coberta a lembram de que Sugar Kane não chega a morder a luva.

Assim ela se calaria. E borraria o batom.

Three times (2007)

Cabelo loiro, mas nada curto, que ela não teve coragem de cortar: esta também é Isabel. Já se habituou ao frio. Já não se empolga tanto com locadoras. Já iniciou o modo “piloto automático” na faculdade – de que serve um curso de administração quando sua vida é uma bagunça?

Ela queria ficar em casa fazendo maratona de Lost ou revendo Brilho eterno de uma mente sem lembranças – ah, se ela tivesse o cabelo azul… –, mas aceitou ver a estreia do Homem-Aranha 3. É um convite dele (sim, ela ainda gosta dele), lógico que ela vai. Vai como se eles ainda fossem duas ou três vezes por semana ao cinema, como se ainda fizessem trabalhos juntos e, jogados no sofá, emendassem a tarefa com um filme, como se não houvesse tantos desencontros no período de intercâmbio, como se não existisse Juliana – aquela vaca. Se o fim da trilogia for tão bom quanto o segundo filme, sair de casa terá valido bastante a pena.

É a primeira vez que pega uma sessão lotada e não consegue pensar em um filme menos merecedor disso. Nada mais constrangedor do que um Peter Parker emo dançando na rua. Mas quem é Bel para pensar em vergonha alheia? Qualquer pessoa na sala sentiria algo parecido ao ver a moça esperando um esbarrar de cotovelos, um comentário ao pé do ouvido ou (milagre!) um beijo súbito, acompanhado de um eu-te-amo-há-tanto-tempo-e-não-consigo-esconder-mais-por-isso-resolvi-me-declarar-no-meio-dum-filme-de-super-herói.

Mary Jane canta em um restaurante; seu sonho de virar atriz da Broadway forma um padrão bonito, despedaçado e devidamente colado ao piso do estabelecimento. Bel reconhece a canção. Começa a cantar mentalmente e, quando pensa em comentar sobre como gosta daquela música, ele a silencia com um “Shh!”.

É, o amor também acaba no cinema. Ela olha para as mãos no escuro e consegue entender a imagem dos “dois polvos de solidão”.

“Devia ter ficado em casa e descoberto o segredo daquela escotilha”, é o que pensa enquanto ele a acompanha até o seu tubo de ônibus. Ele fala sobre como gostou do filme e ela sabe: essa é a forma de ele dizer “desculpa qualquer coisa, eu estava tão imerso no filme que um comentário despropositado me irritaria”. Mas não importa mais.

Já no ônibus, ela troca o toque correspondente ao número dele no celular. Não mais All Star (“aperto o 11 que é o seu andar, não vejo a hora de te encontrar e continuar aquela conversa que não terminamos ontem, ficou pra hoje”); agora é a vez de Ella cantar que está farta do amor, quando ele ligar.

Mas Bel sabe que não está farta do amor. Só está farta dele.

Enough (2013)

É a terceira vez que Ella termina de cantar a canção – ao menos o que dá para cantar enquanto a ligação não vai para a caixa postal. Ela, Bel, ainda não sabe o que fazer com o celular.

Toque mais uma vez, Sam. Toque mais uma vez para ela decidir se atende ou não, se liga de volta ou não, se fica ou se sai para correr como se fosse uma força irresistível em busca de um objeto incapaz de ser movido.

*

Três cenas, a mesma canção:

* Todos dizem eu te amo, de Woody Allen
* Quanto mais quente melhor, de Billy Wilder
* Homem-Aranha 3, de Sam Raimi