Para nós, brasileiros, ocidentais, sul-americanos, o fim da década de 1980 foi um marco histórico pelo esvaziamento da Guerra Fria, devido essencialmente à desintegração progressiva da União Soviética, que levou ao aparente fim do socialismo no mundo. É claro que não se pode simplificar a situação desse modo, ainda que as aulas de História na escola – salvas raras exceções – nos incentivem a pensar assim. Mesmo nos países em que o regime marxista-leninista foi abandonado, resta um legado social, cultural, econômico, em suma, político, que não pode ser esquecido de um dia para o outro por aqueles que viviam na época nesses locais. Como lidar com tamanha transformação no cotidiano de sua cidade, seu país? Bom dia, camaradas (2001), de Ondjaki, parece tratar um pouco disso.

Trata-se do primeiro romance do angolano Ondjaki, nascido em 1977, certamente uma dessas pessoas que passou pela repentina mudança do cenário mundial com a queda do poderio soviético. No seu caso, ainda pôde acompanhar a alteração no dia a dia, afinal Angola, após a Guerra de Independência (1961-1974), teve um governo monopartidário comunista até 1992. O MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), de inspiração marxista-leninista, tomou o poder dos portugueses sobre sua colônia e enfrentou uma Guerra Civil até 2002 pelo controle da nação. O conflito se deu porque a UNITA (União Nacional para a Libertação Total de Angola) passou décadas lutando pelo poder. Mesmo com a tentativa de eleições em 1992 e consequente abandono do regime comunista, a guerra só acabou após a morte do líder da UNITA.

A nova nação independente da África foi, portanto, um território sob guerra por décadas, assim como tantos outros casos no continente. Esse espaço de violência cotidiana é por onde as personagens de Bom dia, camaradas transitam. Em sua maioria, são crianças que, assim como o narrador-personagem, frequentam uma escola em um bairro de Luanda, capital do país, e convivem com figuras de autoridade por todos os lados (os professores cubanos, os marcos históricos, os soldados em guerra, os ideais socialistas) e ainda conseguem viver suas infâncias juntos.

Por se voltar para a visão das crianças dessa escola, o conflito ideológico-geracional fica mais evidente quando o narrador-protagonista dialoga com adultos, como o “camarada” António, que assim como outras pessoas mais velhas, questionam o protagonista a todo momento sobre suas ideias sobre o mundo ao seu redor. Tendo sido criado em um Estado de exceção com regime econômico socialista, ele não entende todas as referências a outros lugares ou tempos nos quais a guerra e seus símbolos não cabem. É constante a lembrança do passado colonial e de seus modos de vida, bem como a explicação sobre o paralelo capitalista da parte de uma tia portuguesa que vai à Luanda para visitar a família. A interculturalidade da ex-colônia africana também é, portanto, um dos pontos marcantes dessa obra, que, inclusive, se abre com uma epígrafe de um brasileiro, Carlos Drummond de Andrade.

Apesar de se referir a todos como “camaradas”, dentro do código social comunista, fica patente as diferenças entre esses camaradas que deveriam ser iguais sob os olhos do Estado. Angola ainda refletia a colônia que já tinha sido e também não deixava de ser um Estado sob guerra, fundamentado em uma hierarquia militar. A exaltação do combate é a todo tempo posta aos jovens, seja pelo professor de química cubano, seja pelos símbolos dispostos por toda a cidade. A liberdade do povo angolano é sempre citada pelo discurso estabelecido, como nas escolas, em que essa “liberdade” é sinônimo da tomada de poder da metrópole, Portugal, pela MPLA.

As contradições dessa sociedade independente aparecem aos poucos ao longo da obra, por exemplo, na figura do camarada António, cuja presença na casa do narrador-personagem permanece indefinida nas primeiras 20 páginas. A igualdade do socialismo do MPLA se torna palpável quando se percebe que a família do narrador-personagem na verdade emprega António como doméstico em sua casa. Os professores cubanos, em missão na escola das personagens, também se deparam com a desigualdade social ainda clara, o que os leva a perguntar aos alunos a razão de terem relógios e “máquinas de calcular” enquanto eles próprios não tinham ali ou em Cuba.

Por uma narrativa aparentemente “infantil”, Bom dia, camaradas busca tratar dessa diferença de perspectivas da Angola comunista a partir de alguém mais jovem, cuja narração reflete sua idade devido ao distanciamento da norma padrão portuguesa e pela sintaxe que privilegia orações curtas, próprias da oralidade, e vocabulário local, de origem popular. Em certos momentos, como na página 21 (edição da Cia. das Letras), há até mesmo variação do tempo e do foco narrativo simultaneamente: do passado, em primeira pessoa, para o presente, em terceira pessoa. Tal alteração se deve à mudança do “eu” para “minha mãe”, sujeito gramatical do parágrafo, mas ainda subjetivamente próximo do “eu” do narrador-personagem. Essa proximidade afetiva justifica a mudança para o tempo presente, que daria a impressão de proximidade também física da personagem em relação à sua mãe ao relatar uma ação sua cotidiana.

Ainda que seja um exemplo ligeiro, características linguísticas como essa demonstram a intenção de se reestruturar a forma clássica do Bildungsroman, o romance de formação, para a realidade que se deseja abordar. Trata-se de um dos aspectos formais que demonstram a preocupação do autor em formatar seu romance para a proposta dada, que aproxima a escrita da personagem principal. Bom dia, camaradas é um romance voltado para uma personagem em seu percurso de formação, porém não deixa de tratar de questões que envolvem toda uma geração que viveu os dilemas que Angola pós-independência enfrentou ao longos de muitos anos diante das possibilidades de se organizar e dos obstáculos históricos encontrados.