Lembrando o bardo inglês1: Há algo de podre no reino da Venezuela. Ou melhor: há algo de podre na República Bolivariana da Venezuela, terra da revolução de Hugo Chaves, onde hoje, aos trancos e barrancos, ainda reina seu assecla Nicolás Maduro, num cenário tanto de turbulências internas quanto de desprestígio internacional.

Mas o Cinema, tal qual erva daninha em meio ao concreto, consegue florescer nas circunstâncias mais adversas, basta lembrar que A Separação (de Asghar Farhadi, de 2011) levou o Oscar para o Irã em tempos de Mahmoud Ahmadinejad; assim, Mariana Rondón nos traz Pelo Malo, delicada e original crônica sobre adversidade, persistência e relações de afeto.

Chegando sem muito estrondo nas salas de Cinema, o filme coleciona ao menos 11 prêmios internacionais, incluindo o de Melhor Filme no Festival de Havana. Realizado numa parceria entre Venezuela e Argentina, a produção tem muito a ensinar ao ensimesmado mercado audiovisual brasileiro. Sua trama simplória e comovente acompanha o cotidiano de Junior (o excelente Samuel Lange Zambrano), que quer a todo custo alisar seu “cabelo ruim” para a foto de inscrição no colégio. O problema é que, numa configuração extremamente adversa, Junior não tem dinheiro nem mesmo para tirar a tal foto. Assim, vemos como as situações mais rotineiras e os objetivos mais simples tornam-se grande desafios aos que não têm nada ou quase nada – e como isso também opera como desagregador de relações afetivas.

Tudo é muito pobre, muito feio, muito triste. O humor e a leveza do filme ficam por conta das interações entre as crianças e das tentativas desesperadas de Junior para alisar o cabelo (colocando, entre outras coisas, óleo e maionese na cabeça). De resto, do conjunto habitacional em que os personagens moram, até as roupas que a avó costura para que o neto tire a bendita foto como um cantor famoso (eles até ensaiam uma versão mambembe de Meu Limão, Meu Limoeiro, famosa aqui com Wilson Simonal), tudo cheira àquele velho kitsch bagunçado, de excessos decorativos, estampas que não combinam e outras improvisações estéticas que já se tornaram clássicas nas representações do ambiente de vida do latino pobre.

Contudo, esses elementos são potencializados pelo realismo que Mariana imprime em todos os seus takes. Em meio a transeuntes desavisados, no trânsito poluído de Caracas ou acompanhando um jogo de futebol, seus cenários ameaçam ruir a todo momento. O destaque, contudo, é o apartamento em que vivem os protagonistas, composto com esmero e inventividade e cuja geografia é tão confusa que torna-se difícil conceber seu real tamanho. Adornado com móveis velhos, a luz que invade as janelas só revela mais de uma pobreza que não pode ser escondida e não é, em nenhuma medida, metáfora da boa luz ao fim do túnel que traz a saída para os problemas da vida.

Destaque também para o desenvolvimento da trama paralela, sobre a peleja da mãe tentando retomar seu antigo emprego de vigia num prédio estatal. Sem maiores detalhes, subentende-se que a demissão de Marta (Samantha Castillo, também ótima) foi tumultuada e que uma investigação ainda está em andamento. À princípio ela é insistente e corajosa, mas cansada de sofrer em outros subempregos, rende-se ao “jeitinho” latino-americano de fazer as coisas por debaixo dos panos – muitas vezes a única saída numa sociedade deficiente em burocracia racional –, oferecendo ao chefe “qualquer coisa” para retomar o trabalho.

Ainda sobre sua relação com a mãe, Marta tem outro filho, bem mais novo do que Junior, um bebê a quem dedica carinho e paciência. A Junior só resta seu rancor e agressividade. Talvez por ver-se refletida no menino (a semelhança dos atores é tamanha que é fácil pensar que trata-se, realmente, de mãe e filho). Talvez por vergonha de não poder lhe oferecer algo melhor do pouco que tem.

Acima da inocência desse menino pobre, mulato, que não gosta do seu cabelo encaracolado, está a crítica às irreais construções sociais de ideais de beleza, que solapam a autoestima das minorias étnicas e pessoas comuns (como eu e você). Vendendo imagens intangíveis, a televisão, único instrumento de entretenimento de Junior e sua amiga (assim como da maioria dos latinos médios), embala o sonho das Miss Venezuela, um concurso onde, como diz a música, “todas são belas, todas podem vencer”. É brutal e injusto ver esses derrotados ainda tendo sonhos – e tão pueris.

São esses mesmos ideais, normalmente conservadores e ultrapassados, que constroem o principal atrito entre mãe e filho: por gostar de dançar e querer alisar o cabelo, Junior desperta o desespero materno com a possibilidade de ser gay. Marta chega a levá-lo diversas vezes ao médico e tenta “ensiná-lo a ser macho” numa deprimente cena em que transa com seu chefe diante do filho.

Marta tem pouco nas mãos, mas muito a perder. Sua ex-sogra (seu marido morreu, subentende-se que assassinado, envolvido com o tráfico) se oferece para “comprar” Junior. Marta recusa, mas pensa duas vezes. Assim, o humilde, porém engenhoso roteiro constrói situações sínteses dos desafios e humilhações que encaram os menos favorecidos numa configuração social problemática, num mundo de favores e disparidades.

Ao explorar muito bem algumas máximas sociológicas sobre a solidariedade latino-americana, relações personalistas, falta de racionalização burocrática, além de um panorama bastante crítico sobre a configuração política de um país governado por populistas que trombeteiam um socialismo que, na prática, não parece ter feito muito aos mais pobres, Mariana constrói um cenário cortando da atual situação da Venezuela, difícil de ver em outras produções da região, incluindo o Brasil, e que abre espaço a debates e reflexões sobre todo o continente.

Diante da televisão, como ficam dia após dia tantos dos nossos brasileiros, Marta e o filho veem a propaganda governamental mostrando os sacrifícios e promessas do povo pela saúde de Hugo Chávez, que faz procissão ecumênica e doa os cabelos pelo presidente. A cena torna-se tanto mais patética vista hoje, após a morte do líder, e revela como um povo pode ser guiado à alienação acachapante, à jaula de ferro da política obtusa.

  1. Viva Shakespeare! Homenagem aos 450 anos do maior dramaturgo da história, em 24 de abril, dia em que essa crítica foi escrita.