Depois de dois meses acompanhando contos e novelas de ficção especulativa, uma percepção particular começou a se formar: faltam protagonistas masculinos. História atrás de história trazia uma mulher no papel principal. Não deveria ser, mas é estranho.

Entre os frequentes protestos contra as tendências androcêntricas da literatura (como as estatísticas levantadas pelo VIDA), no universo fantástico parece reinar a paz entre os sexos. Atualmente existe mesmo uma inclinação tanto para um maior número de escritoras quanto para um maior número de personagens femininas. Numa amostra das publicações originais de maio, dentre 56 textos, 27 tiveram mulheres como protagonistas (48%) e 25, homens (45%).

É verdade que para chegar a alguma conclusão mais precisa seriam necessárias outras bases de comparação. Será um fenômeno único da ficção especulativa recente? Ou da literatura recente, de qualquer tipo? Ou das histórias curtas? Mas é tentadora a hipótese de que os autores especulativos absorvem mais rapidamente as transformações sociais (o fim da distorção dos gêneros na literatura, no caso).

Pode ser apenas uma impressão, condicionada pelo senso comum, mas a ficção especulativa parece, por natureza, mais aberta a novas experiências e, por consequência, a questionar as tendências tradicionais. Isso parece já ter sido demonstrado em outras condições, como, por exemplo, em Estranho numa terra estranha, de Robert Heinlein, de 1961, que foi adotado como um dos guias da revolução sexual dos anos 1960.

Isso para não falar em viagem no tempo. Coisas muitas estranhas podem acontecer quando se tem uma máquina do tempo…

OK, vamos para a seleção das histórias de maio.

Originais

The Earth & Everything Under, K. M. Ferebee (Shimmer, 5.516 palavras) – No início do conto, pequenos pássaros começam a ser vistos saindo da terra, batendo a poeira e alçando voo. Aos poucos, outros maiores vão aparecendo, gansos, águias, urubus. Quando caçados e abatidos, cada um deles revela, em meios às entranhas, uma carta endereçada a Miss Mayhew.

Mais uma excelente história de bruxaria, como The Devil in America, de Kai Ashante Wilson, mencionada no mês passado. Destaque para a integração perfeita que Ferebee faz entre elementos absolutamente fantásticos e um enredo mundano. Merece a medalha “Neil Gaiman” de fantasia.

The Bulletproof, John M. Shade (GigaNotoSaurus, 11.327 palavras) – Na receita: clima de banditismo, uma técnica para extrair as memórias dos derrotados (oferecidas depois em leilão), e uma protagonista que abandona o fogão de lenha para se juntar aos jagunços. Parece excêntrico demais, mas a história é cativante do início ao fim. Heresias à parte, lembra um Grande Sertão: Veredas versão anime.

Willful Weapon, Fred Van Lente (Lightspeed, 7.090 palavras) – Diferentemente das duas histórias anteriores, Willful Weapon não traz grandes inovações de cenário, trata-se de uma fantasia urbana, que mistura o clima de Nova Iorque do século XVIII com elfos, anões e trolls. No entanto, Fred Van Lente, roteirista da Marvel e criador de HQs de sucesso como Action Philosophers e Cowboys & Aliens, compõe algo especial com um ritmo intenso de ação e de detalhamento. Recomendada para quem curte mais aventura, menos blablabla.

The Fisher Queen, Alyssa Wong (The Magazine of Fantasy & Science Fiction, 5.282 palavras) – Para cada história fantástica parece existir um duplo perverso, em que tudo parece distorcido para revelar o lado obscuro do homem. No caso do conto de Alyssa Wong, é o mito das sereias que se aplica a um cenário ao mesmo tempo mais humano e brutal, numa vila de pescadores próxima ao delta do rio Mekong. Contém imagens fortes.

The Litany of Earth, Ruthanna Emrys (Tor.com, 11.694 palavras) – Por algum motivo místico, maio foi um mês frutífero em homenagens ao universo de Lovecraft. Na novela de Emrys, temos como protagonista uma descendente da família Marsh, que apareceu pela primeira vez em A sombra de Innsmouth. Além de ajudar, na história, a um grupo neófitos, ela guia também os leitores pelo cânone lovecraftiano. Para mais cthulhu, consulte também The Madonna of the Abattoir, de Anne Pilsworth (Tor.com) e The Shadow in the Corner, de Jonathan Andrew Sheen (F&SF).

Unlocked: An Oral History of Haden’s Syndrome, John Scalzi (Tor.com, 21.666 palavras) – Depois que uma pandemia deixa milhões de pessoas com síndrome do encarceramento (locked-in syndrome), isto é, conscientes e alertas, mas incapazes de se moverem, seguem-se investimentos intensos em redes neurais e robótica, que culminam em controle à distância, vidas virtuais e comunidades de C3PO. O formato de documentário, à maneira de Guerra Mundial Z, não é bem empregado, mas vale a pena pelo esforço de Scalzi em pensar os vários desdobramentos sociais da doença.

Republicações

Shiva in Shadow, Nancy Kress (Lightspeed, 18.881 palavras) – Num futuro distante em que a humanidade coloniza outros planetas, uma nave é enviada para investigar anomalias na região de um buraco negro. Na expedição estão dois cientistas, em níveis diferentes de conhecimento e reputação, e uma chefe de comando. Uma ótima história de Nancy Kress, que se distribui com a mesma habilidade entre especulações técnicas e a interação entre os personagens.

Burning Beard, Rachel Pollack (Lightspeed, 7.007 palavras) – Dentre as figuras bíblicas, José do Egito parece ser uma das favoritas para adaptações (vide a explosão arco-íris de Joseph and the Amazing Technicolor Dreamcoat). No conto de 2007, Rachel Pollack mantém o cenário austero, mas expande as especulações em tornos das habilidades divinatórias do protagonista.

Não ficção

Was Jules Verne a Science Fiction Writer, Robert Silverberg (Asimov’s) – Discussões a respeito de rótulos e classificações técnicas costumam ser intermináveis e um tanto infrutíferas. Mas vale a pena conhecer o lado dos críticos que defendem que não, Verne não escrevia ficção científica – a maioria dos seus livros não conteria nenhuma inovação em relação às ideias da época.

Finding the Next Lost: What is an “Operational Theme” and Why Don’t I Have One?, Javier Grillo-Marxuach (Apex) – Quatro anos já se passaram desde o fim de Lost e os estúdios americanos ainda não encontraram um substituto à altura no estilo mistério/ficção científica. Segundo Grillo-Marxuach, um dos trunfos da série era a história particular de cada personagem, um mecanismo que ele procura destrinchar para escritores e curiosos.