Confesso que Angélica Freitas me surpreendeu. Antes que vocês pensem qualquer coisa (boa ou má), deixem me explicar: assim como faço com todo poeta de produção mais recente, ou seja, novidade para mim, li um poema seu em um site qualquer para conferir se valia a pena a leitura de todo seu livro, Rilke shake (2007), publicado em conjunto por Cosac Naify e 7Letras na coleção Ás de Colete. Por esse poema, cujo título não me ocorre, não tive a melhor das impressões de sua produção e criei uma imagem negativa da poeta. Recentemente resolvi lhe dar uma segunda chance e li o livro todo, disponibilizado na internet pela própria autora. O que aconteceu? Voltei atrás e cá estou eu resenhando Rilke shake.

Assim como outros poetas contemporâneos nossos, Angélica Freitas parece escrever a todo tempo à beira de dois abismos: o da tradição poética, assustadora, que acena de longe lembrando que é impossível retomá-la como era antes, e o da cultura popular, não necessariamente “popular” no sentido mais tradicional, pensando-se nas raízes culturais do país, mas sim de toda a indústria cultural e arredores. Seu conhecimento literário é evidente pelas constantes referências dadas em seus poemas (sendo Gertrude Stein a mais frequente), enquanto que a cultura popular ou pequenas anedotas cotidianas também tomam conta de seus textos por diversos meios.

O próprio título da obra mostra como esse diálogo entre erudito e popular é um dos motores de sua poesia, já que temos ali “rilke”, de Rainer Maria Rilke, e “shake” de “milk shake”, um dos maiores símbolos da cultura popular de origem americana. O jogo linguístico que assemelha “rilke shake” a “milk shake” não pode deixar de ser relevado, sendo mais uma prova de que a exploração formal também está em pauta. Há exceções, é claro, porém a maioria dos poemas parece levar mais adiante todas as questões postas ao longo do livro para outro nível, mostrando como Angélica está bem consciente do que escreve, não sendo uma poesia que simplesmente “sai” da cabeça do autor, como se fosse uma pura expressão do sujeito sem qualquer reflexão linguístico-literária. Um deles é “ringues polifônicos”:

1. entre ringues polifônicos e línguas multifábulas
entre facas afiadas e o elevado costa e silva
entre dumbo nas alturas e o cuspe na calçada
alça vôo a aventura na avenida angélica
e hoje de manhã trabalha e amanhã avacalha
a viação gato preto colando um chiclete
adams de menta no assento daqueles bancos de trás
entre ringues polifônicos e tênis alados
entre paulistas voadores e portadores esvoaçados
de baseados no bolso das calças jeans
entre o canteiro central da paulista e a vista do vão do masp
entre os que eu quero e os que queres de mins
[…]

A exploração das relações entre real e imaginário, entre oposições não necessariamente contrárias, a presença de elementos da vida cotidiana com metáforas absurdas e o desenvolvimento da forma do poema em seu ritmo constante fazem termos essa noção de “ringue”, de real disputa com a língua na construção do poema e com o outro, o leitor, por consequência, que quer outra coisa que o eu-lírico não quer.

Talvez não por esse exemplo, mas por outros é possível perceber que a dinâmica do cotidiano palpável e da experiência formal está sempre presente na obra de Angélica. Às vezes parece poeta marginal, às vezes parece herdeira direta dos modernistas (de Gertrude Stein, mas é claro). Sendo Rilke shake seu primeiro livro, acredito que Angélica ainda poderá continuar a escrever poesia cada vez melhor e me surpreender cada vez mais. Se ficou curioso  pelo livro, fique à vontade para fazer o download do arquivo pelo link a seguir, oferecido pela própria autora: http://www.mediafire.com/view/?9nhaj3ug8sbr9bl.