Pode soar um tanto paradoxal escrever isso aqui, mas tenho certo problema com autores que são declarados como grandiosos pela mídia. Bolaño, eu lia muito, até começar a ser tão falado. Depois me veio certa canseira. David Foster Wallace? Nunca cheguei perto, duvido que chegue algum dia. E por aí afora. Não é que eu não queira, mas é que me irrita tanto falatório, e as formas do falatório – a proclamação de gênios é assunto complicado.

Mas com Hans Keilson é diferente. Declarado pelo New York Times como um dos maiores nomes da literatura do século XX, o autor ficou esquecido por muito tempo e foi só a promulgação desse status que o fez ser largamente conhecido – caso contrário teríamos uma história triste e corriqueira: um grande autor em seu país adotivo, a Holanda, mas completamente esquecido no resto do mundo.

Suas duas “obras primas” já foram traduzidas por estas bandas: Comédia em tom menor, sobre um casal holandês que, durante a ocupação nazista, se propõe a esconder um judeu; e A morte do inimigo, sobre o qual escrevo aqui.

O livro começa sendo apresentado como um manuscrito de autor desconhecido, que foi entregado a um advogado antes da guerra – e este pede para que seu interlocutor leia o texto e lhe diga o que pensa. Soa um pouco clichê, um pouco ingênuo, mas isso é facilmente esquecido. O importante é, obviamente, o que vem a seguir – o conteúdo do tal manuscrito.

Trata-se de um testemunho sobre o nazismo, obviamente escrito por um judeu. É uma confissão pessoal de um judeu alemão sobre sua relação, sobre seus sentimentos a respeito de Adolf Hitler. Sem, no entanto, que jamais se nomeiem perseguidor e perseguido: em momento algum no livro cita-se o nome do líder nacional-socialista, nem o de seu partido, nem se identifica seu ideário de modo detalhado; ele é chamado apenas de “B” ou de “o inimigo”, fala-se sobre seu desprezo a um grupo e sobre seu carisma.

Não é necessário detalhar mais – a não ser que o leitor tenha sido criado em um mundo completamente revisionista.

Eu diria até que claras demais, pois se as resenhas e críticas a respeito do livro costumam colocar aqui o motivo da suposta genialidade, sou obrigado a discordar: tudo me parece óbvio demais, Keilson não cita nomes, mas também não deixa lacunas em branco, é como se pegasse seu leitor pela mão e o conduzisse até a conclusão – que, vamos e venhamos, nem seria tão complicada assim e, mesmo que fosse, uma dose de incerteza não seria ruim.

De qualquer maneira, o mais importante é o modo como essa relação é lentamente construída, desde quando o protagonista escuta seus pais falando a respeito do tal inimigo, até um fatídico encontro com o homem. No meio do caminho o crescimento de “B.” em poder e as consequências da aceitação de suas ideias pela população geral.

No começo, pensar que ele chegaria ao poder parecia loucura. Lentamente, porém, suas ideias vão se infiltrando e, à criança que o protagonista ainda é, são barrados os jogos de futebol com os amigos – apesar de ele não ser um mau jogador, é preterido por ser o que é.

Hans, o narrador, não consegue, porém, sentir o ódio puro que seus companheiros de infortúnio sentem pelo inimigo. Ele tem qualquer necessidade de compreendê-lo, parece pensar que é tudo um engano e que poderia convencê-lo a mudar de ideia. Quer vê-lo, quer ouvi-lo.

Uma das cenas mais interessantes do livro é quando Hans, já um jovem adulto e longe de sua cidade natal, acompanha uma jovem que trabalha com ele até em casa. Passam o tempo entre aparentes flertes, até que o irmão dela chega com alguns colegas. Um deles inicia uma narrativa sobre uma incursão a um cemitério – um cemitério judeu, o que, apesar de não explícito, fica óbvio – com o intuito de vandalizar os túmulos. Se, por um lado, Hans sente-se compelido a abandonar o lugar, qualquer coisa dentro de si o faz querer ouvir a narrativa, querer pertencer àquele grupo coeso que se forma, paradoxalmente, ao redor do ódio pelo que ele é.

Aí, creio, reside a chave da obra. Hans não consegue aceitar o ódio puro e simples, e, por consequência, não consegue ofertar esse sentimento. Ele precisa de uma justificativa e precisa compreender, não pode acreditar no que acontece porque precisa olhar o inimigo nos olhos e entender a razão de serem inimigos.

Não obstante o tom complexo que o livro assume, parece que certa ingenuidade paira sobre a narrativa, o que tira um pouco do brilho do romance. Isso, porém, é perdoável – afinal parece ser a pura ingenuidade do narrador que permite que ela tome tais rumos. O que incomoda mais, pelo contrário, é que por vezes ela parece perder-se, complicar-se sem necessidade.

Eu não lhe daria a etiqueta de obra-prima, mas ainda assim o livro vale a pena, especialmente por seus defeitos: é, no fim das contas, um livro humano, demasiado humano.