Existem nomes que parecem definidores de caráter, Cornelia é um deles e pode ser associado a força, poder e certo perigo. Suas possuidoras já foram imperatrizes, uma foi casada com o próprio Júlio César e outra era Africana de sobrenome. Cornelia Keneres, contudo, não é tão poderosa assim, ostenta apenas uma influência personalista e um pouco fora de moda sobre os nouveaux riches da alta classe romena, mas demonstra todo seu poder de fogo e rigidez moral para livrar o filho das implicações judiciais pelo atropelamento e a morte de um jovem pobre.

Essa é a trama de Instinto Materno, de Calin Peter Netzer, escrito por Razvan Rabulescu e vencedor do Urso de Ouro e do prêmio da crítica no último Berlinale. Cornelia é vivida por Luminita Gheorghiu (de 4 meses, 3 semanas e 2 dias), respeitada atriz de teatro, que disse ter sentido receio com a proposta de viver, pela primeira vez na carreira, uma personagem rica. O resultado alcançado, contudo, beira a maestria, e sua construção nos faz lembrar as grandes matronas do teatro clássico, bem como (e não só pelo nome e aparência) a Carmela Soprano (Edie Falco) do seriado The Sopranos (HBO, 1999-2007).

Como bem lembrou a crítica Neusa Barbosa, do CineWeb, em sua crítica do filme para o portal G1.com, Cornelia encarna a versão romena da interjeição brasileira “você sabe com quem está falando?!”, registrada pelo antropólogo Roberto DaMatta como um rito de afirmação de poder e privilégios da alta classe do nosso país1. Embora as trajetórias sócio-históricas dos dois países sejam completamente diferentes e que “as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”, é curioso notar a semelhança dos comportamentos e como as falhas das instituições públicas abrem brechas ao personalismo e à corrupção. O jeitinho daqui também existe lá.

Durante uma apresentação de teatro contemporâneo, ela é avisada de que seu filho se envolvera em um acidente de carro que resultou na morte de um jovem, filho de camponeses. A partir daí, essa mulher não poupa esforços para que nenhum dos direitos de “seu bebê” (que tem 32 anos) sejam violados, mas também tenta de todas as maneiras facilitar a vida do rapaz, fazendo exigências esdrúxulas na delegacia e até interferindo no depoimento escrito pelo filho.

Curiosamente, a relação entre mãe e filho não é das melhores e o rapaz, vivido por Bogdan Dumitrache, não demostra gratidão pelo auxílio, muito menos arrependimento. Seu trato com a mãe é grosseiro, seu comportamento é agressivo e arrogante com todos à sua volta, ignorando o pai e maltratando a namorada, e tudo o que ele quer é livrar-se o mais rápido possível de todas as responsabilidades legais sobre o ocorrido. Mais curioso, porém, é perceber que as personalidades desses dois são muito parecidas, fazendo do filho um espelho que reflete o pior de Cornelia.

Por trás dessa trama densa e sem nunca pecar por excessos dramáticos, os criadores revelam nuances sobre a nova alta classe sociedade romena, filha da abertura do fim da Guerra Fria, e que assimila de forma um tanto quanto cafona os costumes da aristocracia ocidental. Suas personas são caricatas, suas roupas exageradas, parecendo emular o pior da classe média alienada estadunidense. Para além, o filme também revela a corrupção intrínseca do aparelho estatal, vírus que parece inerente a todo Estado-Nação, numa icônica cena em que o policial responsável pelo inquérito do acidente pede um favor a Cornelia.

Com o realismo das pequenas e poderosas produções recentes, Instinto Materno não precisa de malabarismos técnicos ou dramatúrgicos para render uma boa história e consegue revelar com êxito as sombras da prepotência e da arrogância, além de permitir associações que não se limitam à cultura romena e que incomodam ao serem percebidas tão perto de nós.

  1. In DAMATTA, Roberto. Carnaval, Malandros e Heróis. Editora Rocco. 6° edição. Rio de Janeiro. 1997